Ibn Sina

AVICENA (Ibn Sina)

Por Jamil Ibrahim Iskandar

Avicena é o nome latinizado de Abu Ali al-Hussein Ibn Abd Allah Ibn al-Hassan Ibn Ali Ibn Sina, ou simplesmente Ibn Sina, como é comumente chamado no mundo árabe. Ele nasceu no ano de 980 em Afshana, na antiga Pérsia, lugarejo hoje situado no Uzbequistão.

Sem dúvida, este filósofo[1] e médico pode ser considerado como um dos gênios da humanidade. Sua capacidade intelectual precoce foi evidenciada quando ele tinha apenas 10 anos de idade, pois nesta fase de sua vida já havia decorado todo o Alcorão, o Livro Sagrado dos muçulmanos. Há até um nome próprio em árabe – Háfiz - que designa de modo muito especial uma pessoa que tem o Alcorão memorizado[2]. São aproximadamente 76.000 palavras, 114 capítulos (suwar) e cerca de 6.220 versículos (ayát). No contexto islâmico, esta atitude é uma proeza relevante porque é normal as pessoas se utilizarem de passagens do Alcorão tanto no âmbito da vida acadêmica como em questões simples para dar mais credibilidade ao que se quer dizer.

Ademais, a filosofia em terras do Islã surgiu impulsionada pela hermenêutica alcorânica. O desejo de conciliar razão e fé criou entre os muçulmanos um extraordinário movimento para explicação e interpretação do conteúdo do Livro Sagrado (o Alcorão).

Se no Ocidente há separação entre ciência e religião, razão e fé, no Islã praticamente é inexistente este dualismo e, segundo Avicena, não há nada na filosofia que seja contrário à lei religiosa do Islã. Pode-se dizer que os filósofos muçulmanos do medievo procuraram estabelecer a harmonia entre filosofia e religião.

Com menos de 18 anos de idade, Avicena, o Sumo Sheik ou o Grande Mestre (Al-Shaikh Al-Raís) como ficou conhecido no mundo árabe, já era médico e dominava conhecimentos amplos de filosofia, matemática, lógica, jurisprudência, teologia, entre outros. Produziu mais de duzentas obras. Merecem ênfase duas muito conhecidas: O Cânon de Medicina (Kitáb Al-Qanún fi al-Tib) e Al-Shifá’ (a Cura). O Cânon foi traduzido para o latim por Gerardo de Cremona no final do século XII, tendo sido utilizado como base para os estudos de medicina nas universidades européias até o século XVII.

Avicena foi um personagem louvável na união entre um conhecimento prático (a Medicina) e outro especulativo (a Filosofia), utilizando-se dos dois para ampliar os horizontes do conhecimento sobre o ser humano.

Al-Shifá’, obra enciclopédica composta de 18 volumes que abrange metafísica, psicologia, física, matemática, astronomia e lógica, é dividida em quatro sumas da seguinte forma: metafísica, física, matemática e lógica. Cada suma é dividida em livros e cada livro é dividido em seções e as seções em capítulos. O próprio Avicena deixou claro o seu objetivo com esta obra. Ele afirmou:

Nossa intenção é pôr neste livro o fruto das ciências dos antigos que pudemos verificar; ciências baseadas numa dedução firme ou numa indução aceita pelos pensadores que buscam a verdade há muito tempo. Esforcei-me por incluir na obra a maior parte da filosofia... Não há nada de importante nos livros dos antigos que não figure nesta obra. Se algum elemento não for encontrado em seu contexto habitual, é porque o coloquei em outro lugar que considero mais conveniente[3].

Al-Shifá’ influenciou a elaboração do pensamento ocidental a partir do séc. XII, tendo em vista que algumas partes, como a metafísica e a psicologia foram traduzidas para o latim.

O pensamento filosófico de Avicena foi influenciado por filósofos da Grécia Antiga, particularmente pelas filosofias de Aristóteles, Platão (refuta, porém, a pré-existência das idéias ao modo platônico) e pelo neoplatonismo, mas não se pode dizer que ele foi fiel seguidor de alguma delas. Dos filósofos árabes foi influenciado, particularmente, por seu predecessor Al-Farabi, ao qual posteriormente ofuscou com a distinção que o conhecimento filosófico de Avicena recebeu.

Por outro lado, influenciou de modo significativo o pensamento da Escolástica cristã na Idade Média em figuras como Tomás de Aquino, São Boa Ventura, Alexandre de Hales, João Duns Escoto, entre outros. Na sua monumental obra “Suma Teológica” (ou Suma de Teologia), Tomás de Aquino cita Avicena mais de 250 vezes, tanto para aceitar como para discordar do pensamento deste.

Não há dúvida de que é o filósofo muçulmano dos conhecidos e o que mais projetou a filosofia escrita em árabe no Oriente e no Ocidente.

A considerar suas atitudes, me atrevo a dizer que Avicena foi um homem religioso. Tudo indica que cultivava sua religião; o Islã, de modo sincero. Suas obras estão repletas de palavras de louvor a Deus e de exaltação do Profeta do Islã, Muhammad, e sua linhagem. Ninguém faz isto gratuitamente!

Quando estava em dificuldade, procurava a mesquita como refúgio. Aí fazia suas preces e, muito provavelmente, sentia-se reconfortado espiritual e intelectualmente. Quem conhece o ambiente muçulmano sabe que esta prática é comum entre pessoas consideradas religiosas.

Ibn Sina, ou Avicena, morreu no mês de Ramadã do ano de 428 da Hégira[4], correspondente ao mês de junho de 1037 d.C., próximo à cidade de Hamadan, na Pérsia. Nesta cidade, que conserva o mesmo nome, Avicena está sepultado num mausoléu e é motivo de orgulho para seus habitantes e para todos os iranianos[5]. Junto ao mausoléu há várias dependências incluindo uma biblioteca. Hoje o local recebe muitas visitas de caráter turístico e acadêmico.

Sua biografia nos foi passada por seu discípulo Abu ‘Ubaid al-Juzjání que o acompanhou por 25 anos.

Quanto à filosofia e sua divisão, o nosso filósofo divide a filosofia em especulativa e prática. Afirma, ainda, que “a filosofia é o aperfeiçoamento da alma humana”. Isto se aplica tanto para o aperfeiçoamento relativo à razão, ao intelecto, pela apreensão de conceitos pertinentes às coisas e o assentimento das verdades relativas a estas, como para a filosofia prática, isto é, o agir humano. O poder de apreensão intelectual do ser humano é função exclusiva da alma humana. Esta alma é isenta de matéria e até mesmo de associação à matéria, afirma Ibn Sina. Para ele, a verdadeira noção de ser humano é aquela que inclui o que é essencial à essência deste ser humano e não apenas os elementos relativos às coisas percebidas pelos sentidos.

A física aviceniana conserva os quatro elementos dos antigos (água, ar, terra e fogo) e divide os corpos em simples e compostos, sendo os primeiros indivisíveis em corpos de naturezas diferentes, porém, os corpos compostos podem dividir-se em corpos de formas diferentes.

No âmbito da metafísica, ou filosofia primeira, Avicena sustenta que qualquer essência que não subsiste num sujeito é uma substância, e a essência que subsiste num sujeito é um acidente. Há que se destacar que nesta temática houve uma importante contribuição aviceniana para a época quando ele propôs a distinção real entre essência e existência, negando que a existência seja um simples acidente da essência. A existência é algo concreto, a essência é absolutamente abstrata.

O elemento fundamental da metafísica aviceniana é a divisão do ser[6]. Há duas classes de ser: o ser necessário e o ser possível. O ser necessário é aquele que, quando suposto inexistente, decorre disto um absurdo. O ser possível é o que quando suposto inexistente ou existente, não decorre daí absurdo algum. O ser possível não é necessário, tanto no ser (no existir) como no não-ser (não existência).

O ser necessário pode, ainda, sê-lo por si mesmo ou não por si mesmo. O ser necessário por si mesmo é o que é para si, não para outra coisa, seja o que for; torna-se absurdo não supô-lo desta forma.

E o ser necessário não por si é aquilo que, quando se supõe alguma coisa que não seja ele, torna-se ser necessário; como o número quatro é necessário não por si, mas quando se supõe dois mais dois. A combustão e a queima não são necessárias por si mesmas, mas quando se pressupõe o concurso da potência agente por natureza com a potência passiva por natureza, quero dizer, o que faz queimar e o que é queimado[7].

Como se pode constatar, estes argumentos tem como base a lógica modal de Aristóteles[8]. A exposição de Avicena sobre estas classes de ser tem como finalidade a prova da existência de apenas um ser necessário por si mesmo; por sua essência. Todos os demais seres dependem deste ser necessário.

[1] Sobre a biografia de Avicena pode-se consultar o livro de GOHLMAN, William E. The life of Ibn Sina. New York : State University of New York Press, 1974. Esta biografia foi baseada no que o próprio Avicena ditou a Juzjání, seu discípulo por 25 anos, acrescida de informações do próprio Juzjání.

[2]Algumas pessoas que sabiam o Alcorão de cor exerceram papel importante quando foi estabelecido o primeiro volume único e definitivo deste livro em 653.

[3] Ibrahim Bayumi Madkur, O Correio da Unesco, ano 8, nº 12, Rio de Janeiro, FGV, 1980, p.15.

[4] Hégira: é o nome relativo ao calendário islâmico. A palavra Hégira (do árabe Hijra), designa a emigração de Muhammad (Profeta do Islã) de Meca para Medina. Isto correu em 622 da Era Cristã e corresponde ao ano 1 do calendário islâmico.

[5] A antiga Pérsia hoje se chama República Islâmica do Irã.

[6] A este respeito pode-se consultar o livro a Origem e o Retorno (Al-Mabda’ wa Al-Ma‘ád). Tradução e aparelho crítico de Jamil Ibrahim Iskandar, da editora Martins Fontes. Nesta obra Avicena expõe amplamente o conceito de ser necessário e ser possível.

[7] Esta parte é tradução integral do primeiro capítulo do livro a Origem e o Retorno. Citado anteriormente.

[8] Pode-se conferir em Peri Hermeneias, cap. XII, 21ª ss.