Sobre o Agente Verdadeiro... (Al-Kindi)

EPÍSTOLA DE AL-KīNDī SOBRE O AGENTE VERDADEIRO; O PRIMEIRO, O PERFEITO, E SOBRE O AGENTE IMPERFEITO, QUE É AGENTE POR EXTENSÃO[1]

Jamil Ibrahim Iskandar[2]

EM NOME DE DEUS, O CLEMENTE, O MISERICORDIOSO

MEU ÊXITO NÃO É SENÃO POR INTERMÉDIO DE DEUS

Disse aL-KīNDī : é necessário esclarecermos o que é o agir e por quantos modos se diz o agir. Dizemos: o agir verdadeiro e primeiro, é a existência de existentes (mawjudāt) a partir da inexistência. Ficou esclarecido que este agir é próprio de Deus Altíssimo, que É o fim de cada causa pois, a existências dos existentes não é de outro[3]. Quanto ao agir verdadeiro e , de acordo com o que se aplica a este agir, é o efeito de quem causa efeito naquilo sobre o qual causa efeito. O agente verdadeiro causa efeito sem sofrer nenhum gênero de efeito. Portanto, o agente causa efeito sem sofrer nenhum gênero de efeito. O agente verdadeiro é o agente cujas ações não sofrem passividade absolutamente mas, sofre passividade aquele que recebe o efeito a partir do efeito de quem causa efeito; quero dizer: o que sofre passividade a partir do agente.

O agente verdadeiro que, absolutamente, não recebe passividade é Deus (Al-Bārī), Agente do universo, que Seu louvor seja exaltado. Quanto ao que não é Ele, quero dizer, todas Suas criaturas, são chamadas agentes por extensão e não são verdadeiramente (agentes). Quanto aos primeiros agentes por extensão, eles existem a partir de seu Formador Altíssimo ( Al-Bārī – Deus), e outros existem uns a partir dos outros. Deste modo, o primeiro destes é passivo e a partir de sua passividade um outro torna-se passivo e (também)[4] um outro, ainda, torna-se passivo a partir deste e , assim, até acabar[5] no último dos passivos. Quanto ao Formador Altíssimo (Al– Bārī - Deus), Ele é a causa primeira de todos que sofrem passividade; os que são por intermediação e os que não são por intermediação pois, na verdade, Ele é Agente e não é passivo, absolutamente, porque Ele é causa próxima para o passivo primeiro e causa por intermediação para o que vem após o primeiro passivo de seus respectivos passivos.

Esta espécie de agir divide-se em dois; quero dizer: o agir dos passivos, cujo agir é por extensão e, portanto, não verdadeiro – então , nenhum agente destas passividades é agente puro mas, é passivo puro, e sua passividade é causa para a passividade de outro – a um deles atribui-se este nome comum, quero dizer, o agir, e não cessa o efeito sobre ele com o cessar da passividade de seu agente, tal como o caminhante para o caminhar pois, se este suspender o caminhar, cessa o caminhar pelo cessar da passividade do caminhante, não lhe havendo efeito nos sentidos. A segunda divisão é a permanência do efeito passivo após a suspensão daquilo que causa efeito com a sua passividade, como o esculpir e a construção e todas as artes ; são seu efeito, quero dizer, o que é causa de seu efeito. Esta espécie de agir é própria do nome trabalho.

Isto é suficiente pelo que fui questionado. A epístola completou-se. Louvado seja Deus, senhor da humanidade, que a benção de Deus seja sobre Seu Profeta Mu¬ammad e todos seus familiares.

Comentário ao texto.

Interessa aqui expor como a tradição filosófica árabe entendeu o termo Ibda‘. Esta palavra aparece no Alcorão antes mesmo de ser uma questão filosófica. Está presente, por exemplo, nos capítulos (suwar) al-An‘ám (Os Rebanhos), versículo 101 e al-Baqara ( a Vaca) versículo 117. Os dois capítulos iniciam com a frase “Bádi‘ú al-samáwati wa al-ard.....” (Criador dos céus e da terra),

Al-Kindi afirma que Ibdá‘ significa o aparecer, a manifestação (izhár) de uma coisa a partir do nada[6]. Por sua vez al-Farabi afirma que ibdá‘ é o fazer existir alguma coisa mas, não a partir de uma outra coisa pois, tudo que é gerado a partir de uma coisa qualquer, não há dúvida que corrompe-se para esta coisa. O mundo, porém, não foi criado a partir de uma coisa.[7] Em outra obra refere que ibdá‘ é a preservação (hufz) da permanência da existência de uma coisa cuja existência não é por sua essência ; (esta) preservação não tem relação com algo causal a não ser a essência do Criador (al-Mubdi‘)[8].

Avicena afirma que ibdá‘é um nome comum a dois entendimentos: um dos quais é a constituição de uma coisa mas, não a partir de uma outra coisa , nem por intermédio de alguma coisa. O segundo entendimento é que haja para esta coisa uma existência absoluta a partir de uma causa sem intermediação e não deve existir a partir de sua essência e , também, ficando privado daquilo que tem de sua essência com absoluta privação.[9]

Numa outra obra Avicena afirma que a noção que é chamada ibdá‘ entre os filósofos , é o existir de uma coisa depois de sua não existência absolutamente. Assim, então, o causado deve ser em si mesmo não-ser e a partir de sua causa deverá (passar) a ser[10].

Numa outra passagem , Avicena dá um outro conceito associando a ele uma certa hierarquia quanto ao entendimento da palavra criar. Ele diz que al-ibdá‘ é que haja existência para outro porém, unicamente a partir (de uma coisa), sem intermediação de matéria, de instrumento ou de tempo. E quilo que é ante cedido por privação temporal, não prescinde de um intermediário. Ibdá‘ e o mais alto grau de geração e do começar a ser no tempo[11].

[1] Por extensão: é uma referência aos corpos dotados das três dimensões espaciais.

[2] Professor de Filosofia Medieval árabe na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Campus Guarulhos e tradutor deste texto diretamente do árabe.

[3] Não é de outro: o mesmo que não é por outro.

[4] Os parêntesis são do original.

[5] Acabar: ter como fundamento.

[6] Veja a respeito disso Rasá’il Falsafiyya ( Epístolas Filosóficas).

[7] Veja a obra Kitáb jam‘ Bain ara’ al-Hakimain ( reunião entre a opinião dos dois filósofos).

[8] Veja a obra Preciosidades das questões (Masá’il).

[9] Veja a obra Kitáb al-Hudúd ( Livro das Definições).

[10] Veja a obra Al-Shifá’.

[11] Veja a obra Isharát).