illusions (ou a persistência retiniana)/ ZIP'UP - ZIPPER Galeria

Tudo começa com a ação do artista que, como um arqueólogo, parte em busca obstinada por vestígios de um tempo fragmentado, narrado de modo controverso e nem sempre imparcial. Instrumentos antigos, artefatos militares e backlights, adquiridos através de um olhar atento e constante ao comércio de antiguidades, consolidam um terreno no qual as ambivalências são fundadas, desvelando a dualidade ilusionista da razão. Objetos ópticos que culminaram no desenvolvimento do cinema, um espelho de barbearia, um instrumento médico ou um antigo manual de treinamento militar, tornam-se dispositivos de visualidade, artifícios de ilusão no trabalho do artista.

Das definições possíveis para a palavra ilusão, aqui acolheremos apenas duas, “engano dos sentidos ou da mente” e “efeito artístico produzido pelo ilusionismo”. Estas são atribuições possíveis para os trabalhos aqui apresentados por Élcio Miazaki, que são deslocados temporalmente e reconstituem situações externas. Em Illusions, termo cognato em inglês e francês, as obras discutem a natureza das imagens e frases que assumem contextos e compreensões subjetivos.

Os personagens retirados de prospectos históricos das forças armadas compõem a figuração presente nas cenas. Frases retiradas do manual militar de primeiros socorros psicológicos convocam reflexões sobre o passado, sem fixar-se nele. Na contramão do esquecimento que o tempo habitualmente impõe sobre as coisas, Élcio revela as instruções subtraídas dos treinamentos, transformando-as em oráculos luminosos imperativos. De modo similar, reordena os ciclos que tornariam legíveis as imagens. A compreensão das cenas ou frases acontece no observador. Portanto, a discussão que se estabelece é ancorada no agora, apesar de partir do passado.

A presença dos instrumentos de persistência retiniana configura outra forma de acolher as imagens resgatadas pelo artista. A retenção das cenas por nossos olhos põe em perspectiva realidade e ficção, o que é factual e o que é projetivo. Os dispositivos ópticos desvelam o questionamento central: acreditar, ou não, naquilo que aparece como fantasmagoria? A sugestão de imagens assume o caráter de figurabilidade[i] de todo conjunto, constitui uma disputa entre a realidade e a ilusão. E, sobretudo, cria expectativas no observador.

E se é a expectativa que cria a ilusão, o artista a ninguém deseja iludir. Intenta apenas revelar uma face da verdade com os seus artifícios. Ao deslocar as imagens e objetos do passado esclarece as regras do jogo, sugerindo que as formas se complementem em nós, bem como que mensagens escritas sejam assimiladas por nossas consciências. O objetivo não é confundir criando duas realidades, mas ocasionar modos de perceber as formas e o tempo através de artefatos que reposicionam porções de um momento que passou, mas que reconstituídos descortinam o passado falando do futuro.

Illusions advém das imagens, que constituem por si mesmas uma existência entre a coisa e a representação[ii], cumprindo uma função de advertir a todo tempo que o passado não é mais, o futuro ainda não existe e o presente nos escapa continuamente. Por esta razão, ratifica a ineficácia do visível, dos discursos de verdade, fomenta mais indagações do que atribui certezas. A convocação aqui realizada é para atentar-se para as dualidades, para a construção de sentido e para as ilusões que nós mesmos criamos.

Shannon Botelho



[i] DIDI-HUBERMAN, Georges. Devant l’image: question posee aux fins d'une Histoire de l'Art. Paris: Minuit, 2008.

[ii] BERGSON, Henri. Matéria e Memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.


ZIP'UP - ZIPPER GALERIA - 2021

fotos_João Mascaro