CINODONTES

Dentro da diversidade de fósseis encontrados nas rochas triássicas do Rio Grande do Sul, os cinodontes se destacam como o grupo mais expressivo. Só no município de Candelária, foram encontradas, até o momento, pelo menos 15 espécies diferentes.

Os cinodontes (Cynodontia = “dente de cão”), juntamente com os dicinodontes (Dicynodontia = dois dentes de cão), são animais vertebrados que fazem parte de um grupo denominado Synapsida. A característica anatômica-chave que distingue os sinápsidos de outros vertebrados, como os répteis, é uma única abertura (fenestra) na região temporal de cada lado do crânio, atrás das órbitas (Figura 1). Estas aberturas são locais de inserções musculares, relacionadas, principalmente, à abertura e fechamento da boca. Nos répteis há duas fenestras de cada lado.


Figura 1. O crânio dos Synapsida, em vista lateral. Fontes de imagens: www.fieldmuseum.org; www.skullsunlimited.com; http://www.life.illinois.edu. Figuras sem escala.

Os Synapsida surgiram no período Carbonífero (~320 milhões de anos atrás), sendo representados neste primeiro estágio pelos pelicossauros. Um pelicossauro bastante conhecido é Dimetrodon, do Carbonífero da América do Norte (Figura 1). Ao final do Permiano, sugiram os sinápsidos mais avançados, chamados de terápsidos (Therapsida), grupo no qual estão inseridos os gorgonopsios, os cinodontes e os dicinodontes, entre outros.

Os sinápsidos (incluindo pelicossauros e terápsidos) foram severamente afetados pela maior extinção em massa de todos os tempos, que marca o limite Permiano-Triássico (~250 milhões de anos atrás), a qual dizimou quase 90% de toda a biota terrestre. Cinodontes e dicinodontes são grupos sobreviventes da extinção, que se recuperaram no período Triássico alcançando um notável cosmopolitismo. Ao final do Triássico (~225 milhões de anos atrás), os dicinodontes foram extintos, vítimas de outra extinção em massa. Os cinodontes também foram afetados por este evento de extinção, porém alguns poucos sobreviveram até o Cretáceo (~130 milhões de anos atrás).

Esta perspectiva da extinção dos cinodontes no Cretáceo muda consideravelmente se entendermos que: (1) Cynodontia é um grupo monofilético (“uma única origem”), ou seja, um grupo natural que reúne todos os descendentes de um ancestral-comum, incluindo as espécies extintas e as viventes; (2) ao final do Triássico, os mamíferos se originaram a partir de pequenos cinodontes carnívoros. Nesta concepção, os representantes atuais de Cynodontia são os mamíferos.

Em uma analogia bem simples, podemos ver os grupos monofiléticos como uma série de matrioscas, as bonecas russas de madeira, colocadas umas dentro das outras. Os mamíferos (Mammalia) seriam a menor boneca da sequência, que seria englobada pela boneca Cynodontia. Esta seria envolvida pela boneca Therapsida, que, por sua vez, estaria inserida dentro de uma boneca maior, denominada de Synapsida. Entende-se, com isso, que mamíferos são cinodontes! Entretanto, para fins de facilitar a leitura e compreensão deste texto, vamos adotar a partir de agora os termos cinodontes/Cynodontia somente para os representantes extintos do grupo, que não são considerados mamíferos.

Cynodontia foi o último dos grupos de terápsidos a surgir no registro fóssil, com os primeiros representantes registrados no final do Permiano (~255 milhões de anos atrás), na África, Rússia e Alemanha (Kemp, 1979; Sues e Boy, 1988). No Triássico (entre 248 e 205 milhões de anos atrás), especialmente a partir da metade do período, os cinodontes atingiram o auge de sua diversificação, com várias famílias bem estabelecidas em todos os continentes, exceto Oceania. Neste momento, a representatividade do grupo foi maior na África do Sul e na América do Sul (Figura 2). Como já mencionado, ao final do Triássico, o grupo sofre um declínio, afetado por um evento de extinção, e apenas uma família sobreviveu até o início do Cretáceo.


Figura 2. Distribuição geográfica dos cinodontes no Permiano e Triássico. As cores representam as diferentes famílias conhecidas. Figura de Oliveira (2010).

Em termos de tamanho, havia cinodontes tão pequenos como um camundongo até formas mais robustas do tamanho de um cão de grande porte. Alguns fósseis na África do Sul foram encontrados associados a tocas, o que sugere hábito escavador, pelo menos para algumas espécies. Os fósseis de cinodontes exibem dentes incisivos, caninos e pós-caninos, que desempenhavam diferentes funções durante a alimentação, um padrão já bastante semelhante ao dos mamíferos. As diferentes morfologias dentárias observadas nos cinodontes mostram adaptações para a exploração de diversos recursos alimentares, como plantas, vertebrados e artrópodes. As espécies herbívoras de cinodontes apresentavam dentes pós-caninos alargados lateralmente, com uma forma retangular. Estes dentes são denominados gonfodontes. Já as formas carnívoras possuíam dentes comprimidos lateralmente, com uma série de cúspides alinhadas ântero-posteriormente, que são os dentes setoriais (Figura 3). A substituição dos dentes nos “cinodontes” era do tipo polifiodonte, como nos répteis, ou seja, várias substituições ao longo da vida (nos mamíferos, a substituição é do tipo difiodonte, com dentição de leite e permanente).

Figura 3. Diferentes dentes pós-caninos dos cinodontes. Acima, os dentes gonfodontes de Exaeretodon (vistos de cima), típicos de formas herbívoras; abaixo, os dentes setoriais de Trucidocynodon (vistos de lado), típicos das formas carnívoras. Figura de Soares et al. (2012), sem escala.


Ao longo da evolução do grupo, algumas mudanças anatômicas importantes se desenvolveram, aproximando os cinodontes mais avançados do padrão esqueletal dos mamíferos. Na figura 1 estão ilustradas algumas tendências. No crânio, a fenestra temporal sinápsida tornou-se mais dorsalizada e cada vez mais ampla. Na mandíbula, o osso dentário aumentou de tamanho, em detrimento dos ossos pós-dentários (angular, articular, supra-angular, esplenial etc.), o que possibilitou o aumento da área de inserção dos músculos relacionados à mastigação. Nos mamíferos a mandíbula passa a ser formada unicamente pelo osso dentário. A dentição se tornou mais especializada, com variadas morfologias dentárias. Outra mudança importante foi o desenvolvimento do palato ósseo secundário (céu da boca) e seu alongamento. Isso permitiu uma separação entre as passagens do ar e do alimento dentro da boca, permitindo que o animal mastigasse e respirasse ao mesmo tempo (o que não ocorre com os répteis). Isso permitiu que o alimento pudesse ser mastigado por mais tempo e, portanto, melhor processado. No esqueleto pós-cranial observa-se uma postura mais ereta (aduzida) dos membros, especialmente nas formas mais avançadas, e uma regionalização da coluna vertebral, que passa a ser dividida em região cervical, dorsal, lombar, sacral e caudal, características tipicamente mamalianas. As costelas ficam confinadas à caixa torácica, o que sugere a presença de um diafragma e, portanto, um metabolismo mais eficiente (Figura 4).


Figura 4. Esqueleto do cinodonte Thrinaxodon. Comprimento total aproximadamente 50 cm. Figura de Kemp (2005).


A maior parte das reconstituições paleoartísticas de cinodontes apresentadas em trabalhos científicos e de divulgação retratam tais animais com o corpo revestido por pelos, à semelhança dos mamíferos. Nestes, a presença de pelos está intimamente ligada à função de isolamento térmico. De fato, várias feições anatômicas sugerem que a endotermia (capacidade de gerar calor através do metabolismo) foi sendo adquirida ao longo da história evolutiva dos cinodontes, não se constituindo, portanto, em uma característica exclusiva dos mamíferos. Entretanto, alguns autores entendem que o desenvolvimento de pelos nos cinodontes deveria estar restrito inicialmente a algumas regiões do corpo, servindo para captação de estímulos do meio (vibrissas = bigodes) ou proteção (região do dorso), mais ainda insuficientes para propiciarem isolamento térmico efetivo (Figura 5).


Figura 5. Reconstituição paleoartística de Trucidocynodon riograndensis, de Adolfo Bittencourt.


Os cinodontes do Triássico são inseridos em dois grupos: Cynognathia e Probainognathia (Figura 6). O primeiro, reúne formas, na sua grande maioria, herbívoras, com os dentes gonfodontes. Dentre estas se destacam os traversodontídeos, como Massetognathus e Exaeretodon. Nos probainognátios, por sua vez, predominam cinodontes carnívoros/insetívoros de pequeno porte (como Riograndia e Brasilodon, do tamanho de um camundongo), com uma dentição setorial. No Triássico do Rio Grande do Sul, tanto cinognátios traversodontídeos quanto probainognátios estão bem representados. E, reforçando o que foi dito no início deste texto, Candelária é o município que detém o maior número de espécies conhecidas de cinodontes.

Figura 6. Árvore filogenética dos cinodontes (baseado em Martinelli e Rougier, 2007; Ruta et al., 2013; Soares et al., 2014), com os táxons do Triássico do Rio Grande do Sul destacados em roxo. Os cinodontes encontrados em Candelária estão marcados com um asterisco. Morganucodon e Sinoconodon são mamíferos basais. Abreviações: PERM = Permiano; TR = Triássico. Figuras fora de escala.


São os probainognátios mais avançados do final do Triássico que compartilham o maior número de características com os mamíferos. Desde a década de 1960, passou a ser consenso entre os paleontólogos a ideia de que os mamíferos se originaram a partir de algum grupo de cinodontes probainognátios. Atualmente, os Brasilodontidae (Brasilodon e Brasilitherium), grupo presente no Triássico do Rio Grande do Sul, incluindo Candelária, são considerados o grupo-irmão dos mamíferos. Isso significa que no mundo inteiro, não há cinodontes atomicamente mais semelhantes aos primeiros mamíferos do que os brasilodontídeos.

A descoberta dos Brasilodontidae em afloramentos de Candelária (Sesmaria do Pinhal) e Faxinal do Soturno (Linha São Luiz) colocou o Brasil no palco do cenário mundial da transição cinodonte-mamífero. Nesse sentido, os afloramentos de Candelária se configuram como um campo de estudo cada vez mais fértil, no que tange a origem dos mamíferos, com perspectivas de brindar a paleontologia de vertebrados com novidades ainda mais instigantes sobre o tema. Quem sabe em breve não sairá de Candelária o mais antigo mamífero brasileiro?

A seguir, conheça quais são os cinodontes encontrados em Candelária.


VER:


Referências bibliográficas

Kemp, T.S. 2005. The origin and evolution of mammals. New York, Oxford University Press, 331p.

Martinelli A.G.; Rougier G.W. 2007. On Chaliminia musteloides Bonaparte (Cynodontia, Tritheledontidae) and the phylogeny of the Ictidosauria. Journal of Vertebrate Paleontology. 27: 442–460.

Martinell, A.G.; Soares, M.B. Evolution of South American non-mammaliaform. Contribuciones Del Macn., v.6, p.183 - 197, 2016.

Oliveira, T.V. 2010. Postura e locomoção em cinodontes do Triássico Sul-americano: um estudo de caso baseado em Trucidocynodon riograndensis Oliveira, Soares & Schultz, 2010 (Triássico Superior, Formação Santa Maria, Bacia do Paraná; Rio Grande do Sul, Brasil). Tese de Doutorado, UFRGS, Porto Alegre.

Ruta M., Botha-Brink J., Mitchell S.A.; Benton M.J. 2013. The radiation of cynodonts and the ground plan of mammalian morphological diversity. Proc. R. Soc. B. 280: 20131865.

Soares, M.B. 2015. Cinodontes fósseis brasileiros revelam os primeiros passos da evolução dos mamíferos. Ciência e Cultura, v.67, p.39 - 45, 2015.

Soares, M.B.; Boos, A.D.; Oliveira, T.V. 2012. Antes dos mamíferos: os sinápsidos permo-triássicos do sul do Brasil In: Geologia do Brasil.1ª ed. São Paulo: Beca, 2012, p. 373-376.

Soares M.B., Martinelli A.G.; Oliveira T.V. 2014. A new prozostrodontian cynodont (Therapsida) from the Late Triassic Riograndia Assemblage Zone (Santa Maria Supersequence) of Southern Brazil. Anais da Academia Brasileira de Ciências. 86(4): 1673-1691.