A compreender e elaborar argumentos lógicos;
A verificar que o alimento foi/é o propulsor no processo de evolução;
Que domesticar as espécies é um processo de risco, mas imprescindível;
A reconhecer que o homem é o responsável pelas modificações dos ambientes naturais.
Somos provocados diariamente a pensar quais serão as nossas alimentações diárias. Temos, além dos gostos pessoais, os costumes e o que o mercado nos impõe. A origem do nosso alimento é algo que poderia/deveria estar no contexto das nossas buscas para uma melhor e segura qualidade de vida.
Em um tempo não muito distante, escolhíamos a matéria-prima para o preparo da nossa alimentação. A memória afetiva dos aromas, sabores e cores está presente no nosso inconsciente, e por isso há relatos como: “o biscoito quebrador que minha avó fazia não tem para ninguém”; “eu lembro quando colhíamos o milho na roça para fazer pamonha, era uma festa”; “o cheiro do café lembra o amanhecer na casa minha mãe”; “a cozinha ficava perfumada quando assava o pão caseiro”; “que vontade dá carne de porco conservada na banha”... Os grandes encontros aconteciam/acontecem em torno de uma mesa. Cabe a nós o resgate e a valorização desse bem comum e necessário.
Nesse contexto, ao saborear um pão não pensamos em como era o trigo na sua forma nativa. A origem da domesticação das espécies vegetais teve início há aproximadamente 15.000 anos com a seleção das sementes nos cruzamentos espontâneos. Há em torno de 300.000 espécies vegetais descritas; 3.000 são utilizadas como alimento; 300 são cultivadas atualmente e 30 são commodities na produção mundial. A erosão genética dos materiais biológicos é evidenciada até na oferta dos alimentos. A diversidade riquíssima na sua forma natural foi/é comprometida pelo homem.
Neste capítulo, serão convidados a refletir sobre a domesticação das plantas, dos animais e das paisagens e seus os reflexos na sua e/ou a nossa vida, e que também somos protagonistas e responsáveis sobre a continuidade desse movimento no âmbito local, nacional e global. Façamos a nossa parte.
“A natureza não faz nada em vão.” Aristóteles
“De um começo tão singelo evoluíram as formas mais belas e maravilhosas”.
(Charles Darwin, 1809-1882)
Darwin, na sua obra a Origem das espécies, cuja primeira edição (1859) teve como título original Da origem das espécies por meio da seleção natural ou a preservação de raças favorecidas na luta pela vida, onde imprimiu a identidade do processo evolutivo da natureza em todos os reinos. Os processos de descendências com modificações e a seleção natural evidenciavam a riqueza por ele observada e descrita sobre a diversidade biológica – árvore da vida – filogenia.
Assim, ao longo do tempo os organismos se modificam, podendo dar origem a novas espécies. Um exemplo clássico da “Lei do Uso e Desuso” foi o desenvolvimento do pescoço da girafa (Figura 1). Segundo Lamarck, ao esticar o pescoço para buscar o alimento das árvores mais altas ele acabou crescendo e essas características são herdadas por seus descendentes.
O naturalista inglês Charles Darwin saiu a navegar pelo mundo em busca de conhecimento no ano de 1835, no apogeu da juventude. À bordo do navio Beagle, percorreu mares e rios durante cinco anos. Ficou famoso, assim como suas observações, coletas e registros das diferentes formas de vida.
Dentre os princípios da teoria de Darwin, os organismos na “luta” pela vida desenvolveram variações favoráveis às condições do ambiente onde vivem e tiveram maiores chances de sobreviver, quando comparados aos organismos com variações menos favoráveis. Assim, ao longo das gerações, a atuação da seleção natural sobre os indivíduos mantém ou melhora o grau de adaptação deles ao meio.
Frente às suas observações não foram consideradas o processo da hereditariedade, o que é transmitido de uma geração para outra. O pai da genética foi o austríaco Gregor Mendel (1822-1884), que teve o reconhecimento do seu trabalho no campo da genética, que transpõe o tempo para a atualidade.
O arquipélago de Galápagos, que pertence ao Equador, foi um importante local de coletas e observações. Nas distintas ilhas que compõem o arquipélago, Darwin verificou diferenças significativas da flora e da fauna.
Os tentilhões de Galápagos (Figura 2) foi uma famosa observação sua: "Observando a gradação e a diversidade da estrutura de um pequeno grupo de pássaros intimamente relacionado é realmente possível imaginar que de uma pequena parcela de pássaros no arquipélago, uma espécie tenha sido selecionada e modificadas para diferentes fins".
Os tentilhões de Darwin se tornaram objetos ideais da pesquisa no estudo de evolução porque procriam rapidamente, vivem isolados nas diferentes ilhas e raramente migram de uma ilha para outra. A observação desse grupo de pássaros favoreceu a compreensão do que ocorre normalmente com as espécies ao longo de milhares de anos.
Somos todos iguais?
Qual o seu olhar frente às diferenças?
Quais os princípios éticos diante da vida e da engenharia genética?
Há segurança diante das mudanças?
Estamos preparados para o desconhecido?
Na série da Netflix Seleção artificial (português) (Figura 3.) e “Unnatural selection” (inglês), um documentário sobre variabilidade genética, a cura de doenças, os biohackers e a bioética somos provocados a refletir sobre outros pontos de vista. Assistir a série https://www.netflix.com/br/title/80208910.
A evolução é testada experimentalmente pelo homem com a intenção de selecionar características fenotípicas e/ou genotípicas desejáveis. Pode-se utilizar informações de seus ancestrais e descendentes ou pela identificação de genes.
O grande propulsor da seleção artificial foi o alimento. O homem deixou de ser nômade ao perceber que das sementes podiam ser gerados novos descendentes, e que os animais os quais se aproximavam na busca de alimentos tinham características de convívios. Há fortes indícios que assim iniciou as civilizações e o desenvolvimento da agricultura. A agricultura, um modo de vida, oferecia importante vantagens, possibilitando alimentar uma maior população do que antes, que consistia na recolha dos bens que a Natureza oferece (grãos, frutos e raízes, caça, pesca etc.). A agricultura não foi adotada por todas as comunidades caçadoras-recoletoras ao mesmo tempo.
A agricultura foi a maior invenção da humanidade. É tão grande que ainda não terminou (MENDRAS, citado por PATERNIANI e PATERNIANI , 2006). Ela começou há aproximadamente 10.000 anos em algumas regiões do planeta. Os nossos antepassados observaram na natureza algumas plantas e escolheram aquelas que seriam mantidas ano após ano, com a seleção crescente ou não, o que se denominou de domesticação. Durante o processo de domesticação, as plantas foram transformadas.
Segundo Carvalho et al. (2014), para garantir sua sobrevivência e perpetuação na natureza, as plantas apresentam mecanismos que facilitam a dispersão das sementes. Existem vários genes relacionados a esses mecanismos. Com a domesticação, o homem começou a selecionar indivíduos em que as sementes não eram perdidas, ou seja, ficavam presas às plantas mesmo após atingirem a maturação fisiológica, como por exemplos, o trigo (Triticum spp.), Milho (Zea mays), arroz (Oryza sativa), aveia-comum (Avena sativa), entre outras. Outras características também foram/são importantes na domesticação como a perda da dormência das sementes e redução drástica da taxa de cruzamento.
No milho, por exemplo, o grande desenvolvimento da cultura deve-se às modificações ocorridas no processo de domesticação. Os grãos, que antes eram protegidos por uma casca dura, passaram a ser cobertos por uma palha que envolve toda a espiga, mantendo a proteção (Figura 4). A emergência das sementes ocorre simultaneamente na própria espiga, o que leva à competição das plântulas por nutrientes e água, impedindo seu desenvolvimento (Figura 5). Tal condição ainda é muito comum devido à colheita tardia após a maturação fisiológica, e com a presença de chuvas ocasionais pode ser favorecida a germinação na espiga.
As comunidades tradicionais e agricultores familiares guardam e multiplicam sementes crioulas, as quais foram “domesticadas” segundo as suas observações. Com o tempo, esses recursos genéticos foram adquirindo características necessárias das regiões onde são produzidas. Por exemplo, as sementes crioulas produzidas na Paraíba são mais resistentes à estiagem. O milho é um dos materiais genéticos que o Núcleo de Educação Agroecológica – Unitas Agroecológica, do Centro Universitário Luterano de Palmas – CEULP/ULBRA, em Palmas, Tocantins multiplica e doa as sementes para fortalecimento da agrobiodiversidade (Figura 6).
Figura 6: Sementes de milho crioulo – diversidade genética. Fonte: Autora.
As feiras livres são ambientes em que podemos encontrar a vasta diversidade de produtos/alimentos os quais passaram por processos de domesticação, e é comum não pensarmos como eles eram na sua forma nativa. O importante é o que nos provocam frente as suas cores, sabores e aromas. Ao comprarmos repolho, couve, couve-flor, brócolis e couve-de-bruxelas não imaginamos que todos esses vegetais são variedades provenientes de uma mesma planta, a mostarda selvagem (Brassica oleracea) (Figura 7).
A presença e o papel de um agricultor é que permitem as características mais desejáveis na seleção artificial, além das circunstâncias ambientais e o advento da Engenharia Genética. Darwin descreveu que “(…) embora o homem não possa causar ou impedir a variabilidade, ele pode selecionar, preservar e acumular as variações dadas a ele pela mão da natureza de qualquer maneira que ele escolha; e assim ele certamente pode produzir um grande resultado (...)”
O russo Nicolai Ivanovich Vavilov (1887-1943) viajou mais de 25 anos nos diferentes continentes e constatou que a biodiversidade agrícola estava dividida de forma desigual; que em alguns lugares havia muitas plantas e em outros poucas; que a biodiversidade dos locais estavam vinculadas a diferentes topografias, solos e climas, e que na sua maioria a biodiversidade agrícola vem de oito Centros de Origem, conhecidos até hoje como Centros Vavilov (Figura 8). Esses locais foram onde as espécies se originaram, evoluíram e apresentaram maior variabilidade. A migração das espécies ocorreu entre todos os continentes, mas há de se considerar que independentemente de onde se cultive batata ou milho as cepas variadas foram/são provenientes do seu centro de origem.
No Centro de Origem (Paraguai – Brasil), as espécies identificadas foram o abacaxi (Ananas comosus); amendoim (Arachis hypogea); cacau (Theobroma cacao); mandioca (Manihot esculenta); maracujá (Passiflora edulis) e seringueira (Hevea brasiliensis).
A domesticação e melhoramento de plantas tenta explorar a variabilidade genética (Figura 9) que existente dentro de cada espécie. Recursos genéticos adicionais têm sido requeridos para preencher as necessidades de geração de variabilidade. O processo de domesticação e a seleção artificial impostos pelo homem têm contribuído para a perda da biodiversidade, fenômeno denominado erosão genética (UNIVERSIDADE, 2000).
No Centro Universitário Luterano de Palmas – CEULP/ULBRA, Palmas, Tocantins há um banco de germoplasma de sementes crioulas que tem como objetivo resgatar, multiplicar e doar sementes crioulas, em especial para as comunidades tradicionais e agricultores familiares. As principais espécies são: feijão-fava, milho, pimenta, feijão-de-corda, feijão-guandu, gergelim, tubérculos, entre outras.
Figura 9: Variabilidade genética de espécies de feijão-fava (Phaseolus lunatus) e pimenta (Capsicum spp.).
Fonte: Autora.
De acordo com a definição do Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, domesticação significa “ato, processo ou efeito de domesticar ou domesticar-se; dominação, sujeição”.
Para Stephen Budiansky, autor do livro A natureza do selvagem (1992), “o processo de domesticação é natural e possibilita inúmeras vantagens para os animais e para os seres humanos". Seu livro é um eloquente apelo à razão no debate emocional sobre os direitos dos animais e às responsabilidades dos seres humanos.
Nos primórdios dos tempos, o homem fazia uso dos animais apenas na alimentação. Com o tempo observou que haviam características nos animais que poderiam ser favorecidos, como: transporte, vestimenta, abrigo (couro) e alimento protéico (carne, leite e ovos). Por outro lado, também houve uma aproximação dos animais aos humanos, que também estavam em busca de alimentos.
Os animais mais fáceis de domesticar são os herbívoros, pois pastam na vegetação. As vacas, por exemplo, são facilmente domesticadas. Os herbívoros que comem grãos são mais difíceis de domesticar do que os herbívoros que pastam. Galinhas são herbívoros que comem sementes e grãos.
Entre os principais animais domesticados estão: cão, ovelha, cabrito, porco, vaca, dromedário, burro, cavalo, gato, elefante de carga, ganso, galinha, marreco, pavão, pombo, abelha, entre outros.
A famosa frase “o cão é o melhor amigo do homem” pode ser porque o cachorro e/ou cão seja talvez o mais antigo animal domesticado pelo ser humano, e nesse convívio houve o estabelecimento do afeto e companhia. É um mamífero carnívoro da família dos canídeos, subespécie do lobo. Há teorias que dizem ter surgido do lobo-cinzento (Canis lupus) no continente asiático.
Os cães possuem boa capacidade de aprendizado, por isso podem ser adestrados. Alguns cães foram domesticados para ajudar as pessoas na caça, guarda, pastor de rebanho, guia etc.
A afetividade estabelecida pelos humanos aos Canis lupus familiaris é tão expressiva que tem sido retratada em diferentes filmes clássicos e novos. Quem não se emociona com um balde de pipoca na mão ao assistir os filmes Amigos para sempre, Marley & eu, 101 Dalmatas, A dama e o vagabundo, Lembranças de outra vida, entre outros. Dificilmente lembraremos nessas vivências o processo de domesticação em que passou o cão que estará possivelmente ao lado.
“Um cão não precisa de carros modernos, palacetes ou roupas de grife. Símbolos de status não significam nada para ele. Um pedaço de madeira encontrado na praia serve. Um cão não julga os outros por sua cor, credo ou classe, mas por quem são por dentro. Um cão não se importa se você é rico ou pobre, educado ou analfabeto, inteligente ou burro. Se você lhe der seu coração, ele lhe dará o dele.” (GROGAN, 2005).
A domesticação de paisagens é um processo inconsciente e consciente em que a intervenção humana resulta em mudanças na ecologia da paisagem e na demografia de suas populações de plantas e animais, resultando numa paisagem mais produtiva e “segura” para os humanos (CLEMENTE, 2001).
É fato que a antropização ocasionou as maiores modificações de paisagens. Ainda temos ambientes que é possível se deleitar diante de uma paisagem não modificada, como o cenário perfeito no Parque Estadual do Cantão, Tocantins (Figura 10). Há vários tipos de paisagens modificadas, como: “Promovidas” – o manejo é feito retirando as plantas indesejadas daquelas que há o interesse, normalmente ocorre com o extrativismo das espécies nativas; “Manejada” – conhecida como roça de toco, em que há o plantio de sementes e mudas e o roço das plantas competidoras com as de interesse (Figura 11); “Cultivada” - totalmente transformada pela eliminação do ecossistema original pela derrubada e posterior tratos culturais (queima, aração, adubação, uso de defensivos químicos, irrigação etc.). É imperceptível a identidade de como era o ecossistema frente às modificações ocorridas (Figura 12); “Afrofloresta” – Sistema Agroflorestal no Centro Universitário Luterano de Palmas, Tocantins (Figura 13). Iniciamos em 2015 com diferentes mãos e olhares, segundo as práticas do agricultor e pesquisador Ernest Göstch – Agricultura Sintrópica. Era um solo sem vida, com cascalho e resíduos da construção civil. Foram introduzidas durante o período aproximadamente 50 espécies cultivadas: hortaliças, espécies frutíferas cultivadas e nativas, plantas medicinais, tubérculos, espécies madeireiras, flores tropicais, adubação verde e Plantas Alimentícias não Convencionais – PANC. Somos parte do sistema e a Mãe Terra agradece. Ver vídeo “Instalação e prospecção do SAF (Sistema Agroflorestal) no Ceulp/Ulbra” (https://www.youtube.com/watch?v=_ei4nAW4sQY)
BUDIANSKY, S. The Covenant of the Wild: Why Animals Choose Domestication. Yale University Press, New Haven, 1992, p. 216.
CARVALHO, B. L. et al. Síndrome da domesticação das plantas cultivadas. 1. ed. Lavras: Fundec, 2014. 42p. Disponível em https://www.researchgate.net/publication/281006047_Sindrome_da_Domesticacao_das_Plantas_Cultivadas. Acesso em 20 jul. 2020.
CLEMENT, C. R. Melhoramento de Espécies Nativas. In: NASS, L.L.; et al. Recursos genéticos e melhoramento de plantas. p. 423-441.
OLSEN, K. M.; WENDEL, J. F. A. Bountiful Harvest: Genomic Insights into Crop domestication Phenotypes. Annu. Rev. Plant Biol. v. 64, p. 47-70, 2013.
PATERNIANI, Ernesto. Coexistência de milho GM e não-GM em cultivos comerciais. (Artigo eletrônico). 2006. Disponível em: http://www.cib.org.br/ctnbio/coexistencia_de_milho_GM.pdf. Acesso em 8 jun. 2012.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA. Entendendo a biotecnologia. [S.l.]: UFV / Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia/Fundação Biominas, 2000. 1 CD-ROM.
Coordenação e Revisão Pedagógica: Claudiane Ramos Furtado
Design Instrucional: Gabriela Rossa
Diagramação: Marcelo Ferreira
Ilustrações: Marcelo Germano
Revisão ortográfica: Ane Arduim