piriguetes e putões

Doses de Saber

Resenhas e Resumos

Isaias Carvalho, 2010

Entrelaçando corpos e letras: representações de gênero nos pagodes baianos

Há pouco ou virtualmente nada publicado, no âmbito acadêmico, sobre o tema do pagode baiano, e ainda mais especificamente sobre suas composições. Por isso, a dissertação de mestrado Entrelaçando corpos e letras: representações de gênero nos pagodes baianos, de Clebemilton Gomes do Nascimento (PPGNEIM, UFBA, 2010) é fonte primária e recomendada de pesquisa sobre o tema. O autor partiu de uma curiosidade inicial: por que há tanta referência à mulher no pagode baiano? Chegou à formulação de descrições conceituais para a piriguete e para o putão, após a análise e problematização da produção de nove bandas desse segmento, entre as que tinham mais visibilidade e tempo na mídia, pois é uma área em que bandas aparecem e desaparecem o tempo inteiro. Essas bandas surgiram na onda do É o tchan: Harmonia do samba, Pagodart, Parangolé, Guig Ghetto, Saiddy Bamba, Oz Bambaz, Psirico e Fantasmão. Faz um histórico do fenômeno do pagode baiano, desde o surgimento do Gerasamba, no final da década de 80. Em 1995, essa banda produz o CD chamadoGerasamba/É o tchan e logo depois as dançarinas vão dominar o imaginário da banda, principalmente na figura de Carla Perez.

Clebemilton Nascimento faz a opção teórico-metodológica pela Análise do Discurso Crítica – ADC, principalmente a categoria das condições de produção, além de teorias feministas contemporâneas que se dedicam à análise das relações de poder e os sentidos a serviço da dominação que podem estar presentes nas formas simbólicas próprias dessas práticas sociais e discursivas através de ideologias internalizadas por seus produtores, os “pagodeiros”, bem como os mecanismos de sustentação das ideologias hegemônicas de feminilidade e masculinidade nas construções discursivas das letras.

Toma o pagode como um produto de cultura híbrida, com matriz no samba de roda do recôncavo baiano. O pagode acrescenta o sampler (tecnologia) e experimentações eletrônicas outras, em diálogo com o funk, o rap e o hip hop. Passa a ser um produto midiático, de entretenimento, de lazer e dança. É, desse modo, nas festas do povo que a mulher negra – tema central da dissertação – e suas expressões culturais passam a ter maior visibilidade, que é limitada na mídia televisiva, por exemplo. É uma forma de celebração da mulher negra baiana. Essas músicas são, em sua maioria, para serem coreografadas e encenadas. É a performance que é dada em forma de comandos em um ritmo que é forte, contagiante e dominante. O autor entende o conceito de pagode não só como um gênero musical, mas um espaço de socialização e construção de identidades coletivas. Além daquilo que é ouvido e visto através das performances de pagode, leva-se em conta os valores, as afetividas e as redes de socialização que são construídas e se incorporam às expressões de sociabilidade. O discurso sai do verbal e vai para o corpo, para as interações sociais e grupais.

Quanto às letras, todas são escritas e interpretadas por homens. A matriz discursiva é falocêntrica, portanto. Produzem um discurso no masculino que fala e expressa suas expectativas, desapontamentos e frustrações sobre o modelo idealizado, dominante, que representa a “mulher ideal”, atacando a mulher real. Essas letras vão do contínuo da celebração da mulher (sensualidade), passa pelo erotismo e vai até a pornografia e desqualificação total da mulher. O poder está no corpo. Veiculam um discurso heteronormativo, assimetricamente definido em um modelo heterossexual (matriz e norma dominante), assentado na coerência entre sexo, gênero e desejo (do homem para com as mulheres).

É nesse ponto que surge a construção discursiva da piriguete, que perpassa o imaginário dos pagodeiros: do contraste da mulher para casar com a mulher para curtir. A piriguete é descrita como a mulher que é dona de seu desejo, o que ainda recebe hostilidade do senso comum e do imaginário burguês no espaço público, como é o pagode. É a mulher que sai sozinha. Aquela mulher sensual e sedutora, e que não se prende a um homem específico. Seu par na representação masculina é o putão, aquele que rompe a norma heterossexual, que tem relações homoeróticas, mas que mantém seu ar de machão e que usa seu corpo como moeda de troca e forma de ascensão social. O putão é parecido com o cafajeste e é a favor do sexo sem compromisso. A linguagem corporal do homem jovem, negro, pagodeiro e heterossexual e geralmente pobre e de baixo nível de escolaridade, é sua chave de entrada no mercado de consumo, com status de emasculação em relação ao homem branco.

De origem no pagode baiano, mas espalhado pelo país inteiro, e para o qual é a musa, a piriguete tem a ver com a independência e a quantidade de parceiros sexuais. Livre, parte para o julgamento moral de marginal, significando perigo para os casados. Tem a ver com leviandade e volubilidade, porque quer viver o momento, o seu desejo. É também a gata no cio. Há inclusive características de vestuário, geralmente insinuantes. É a fruta, a cachorra. É a menina safada, tarada, gaiata, ousada, segundo o imaginário do pagodeiro baiano.

Trata-se de um trabalho original e que certamente vai criar uma linhagem de pesquisa no seio da academia.

NASCIMENTO, Clebemilton Gomes do. Entrelaçando corpos e letras: representações de gênero nos pagodes baianos. 2010. Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo - Universidade Federal da Bahia, Salvador.

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Itabuna/Ilhéus, Bahia, Brasil