poética da melancolia

Ilustrações e Capa

Wellington Mendes

Planejamento Gráfico

João Soares

Revisão

Conceição Paranhos

Rita Aragão Matos

Colaboração

Dilson Midlej

Luciano Paiva Nóbrega

Edição do Autor

Salvador, 1997

Estes

Isaias Carvalho (1997)

I

Poética da Melancolia

Ao leitor (I)

A fala ácida queima seu suporte,

combustão que cala na cara,

cadáveres de sábios europeus,

eis o que jaz às margens destes versos-carbono.

Não é de outra fonte,

a não ser por efêmeras sensações,

que se alimenta este poeta:

da fuligem do velho mundo.

Mas minha fala arde

de onde canto,

do limbo do desejo.

Se finjo bem convivermos,

é porque aos poucos serás devorado,

matéria de mim mesmo.

Lamberei os lábios após engolir-te.

Gargalharei a tua digestão.

Irmão, matéria de mim mesmo,

dar-te-ei a impressão de que escrevo poemas

e não tua sentença:

minha paixão.

Fuligem Poética

Ao leitor (II)

Perguntas se há cura

como para uma doença ou vício.

O que lês nos meus versos?

Mudo, sisudo, apenas

inclino-me sobre o papel

e mel rima pelas bordas

de minha boca,

e quase escuto o pulsar

do pensar.

A música em mim dança,

como se esta língua,

indistinta, jazesse à margem de um poema

e de sua fonte,

pois se soubesse claramente o que dizer

eu não seria poeta.

Respondo: não há cura.

Estética da Melancolia

O único sinal de júbilo

parece ser, em minha poética,

aquela marca seráfica

naquele verso dentre todos:

o próximo verso,

que nunca se realiza.

Aconteceu. O tempo passou, e eu.

Sentimentos são cordeiros

ignorantes de sua imolação semântica.

Meu ser triste, incerto e de parca rima,

perdeu o interesse pela vida?

E a vida (que em mim delira a lira)?

Meu suicídio

força-me a viver,

e o faço,

pois o vinho.

Minha melancolia

não advém

das batalhas e amores perdidos,

do parco tesouro possuído,

dos afetos não recebidos,

da pouca fé,

dos poucos amigos,

do desconhecido,

da peste,

dos males da alma

ou dos defeitos do corpo.

Sã e profunda a minha melancolia,

e vivo,

pois a poesia.

Iminência

A poesia escreve-se.

Cada poema singular

é verso ou rima

contida no poema maior: a vida.

Corrói-me a cada passo

este desejo esparso,

de síntese

dos heterogêneos ásperos espinhos

que brotam de mim,

rasgando a pele do sentido.

Busca da morte,

um grito

sem dor nem porquê.

Deslizo impreciso

meio a corriqueiras intenções,

coisa espremida, expelindo metáforas,

para alcançar o preciso

momento de dizer, expiação

pelos que afoguei, sufoquei.

Métrica e previsíveis rimas,

neguei.

Frenesi de buscar.

Profética criação,

ainda que se resuma em mera latência

toda a poesia que há para ser.

Poema sem carne

Que mais fazer

senão digerir o dito e feito?

Palavras de chama líquida

arrastam-se.

Milênios de criação,

recriação do sempre-mesmo.

Por elas

poetas vampirizados,

nessas noites sem pátria,

quando acaricio a solidão

no frio do poema sem carne.

A língua que transporta a minha dor

Antecede-me.

A arrumação dos sentidos,

mistério maior que chuva, morte.

Pensar, tempestade e funeral, então.

Tanto mais

que apenas no próximo verso

terei algo a dizer. Se tiver.

E agora quebro este poema.

Dor.

A voz das Coisas

Formas são fontes

que se silenciam

enquanto são.

Creio, mas em sonhos.

Dispenso

a busca de vinho

ou de pão,

mas vivo de pão

e de vinho,

deste, como não?

Se nos dias

que se sucedem

tivesse fé,

dormiria mais à sombra,

não aquela fresca e boa,

mas à sombra escura

da largura do ser,

como quando sonhei que estou morto.

Sim. Escrevo autobiografia póstuma.

Já acariciei a solidão.

Creio, porque me é,

na estética da melancolia.

Creio em coisas nas quais

jaz o silêncio,

jazem formas

que se silenciam sendo,

pedindo.

Rimas internas

Alguns morrem sem protestos

nos pequenos afazeres,

nos restos dos fatos triviais,

nos prazeres pequenos,

nos mais inúteis esforços

obscenos dos dias.

Destroços de vida, rima fácil,

alegrias efêmeras de canapé,

dócil permissão

da fé, do tempo.

Solidão de fúteis brinquedos,

contento de nulos planos,

medos pobres incontidos

nos insanos fracos

reprimidos desejos.

Parcos domínios do mesmo,

beijos também. Mesmos, em diferentes lábios.

À esmo, o ser em ideal

que os sábios pintam.

Mau, o que se sabe.

Sintam.

Não cabem nessa tela tantas cores.

Ficam os néscios fartos,

de horrores, alguns fortes,

quase mortos, lutam.

com a sorte traiçoeira não contam,

furtam do nada, a essência.

Sonham o indizível.

Da ciência, os erros.

Impossível, um,

aos berros.

Epitáfio a um músico

Gotas de música

caem sobre o mar de mim,

revolvem a superfície.

Ritmo pulsando, coração de um deus.

Leva-me aos primeiros sons

do desejo no nada.

Mãe-Terra,

útero do cosmo,

sou o quando não era,

ainda.

Poema sozinho

Lua,

buraco de luz no escuro da noite,

porta para outra dimensão,

onde os santos,

anjos não-nascidos.

Lua cuspindo estrelas,

ferindo a escuridão.

Lua. Eu.

Solidão.

Máscara

Meu sono digere

a dor camuflada do dia.

Meu sonho fantasia em sim

o não das coisas.

Pequenas almas

Quando o sol beijava meu dorso,

cavei o solo do ser,

para ali plantar a sombra.

Nasceu negra rosa

de pétalas tímidas à luz,

rosa. Morrerás,

se o mundo,

mesmo que por ínfimo espasmo de tempo,

for todo claridade.

Amiúde,

na calma calma dessa flor de sombra,

descansa a filosofia,

as palavras, descansam -

estas pequenas almas que de tudo zombam.

Encontro

Quando os olhos da simplicidade

avistam os meus,

dissolvo-me em gritos

de silêncio

(não a ausência de som,

mas de sentido).

Cumplicidade.

Desejar.

Desejo tudo em ti.

O desejo que me deseja

como a morte.

Desejo as palavras.

Elas me mordem

em versos tristes, torpes,

a me escreverem

na orgia do tédio,

este, meigo e puro,

uma criança morta.

És tu, poesia,

a quem de simples chamo,

teu adjetivo até a última

gota de minha alma, entretanto.

Não te peço em casamento.

Acasalamento,

é o que te peço

agora. Teus olhos, os meus.

Não te peço para ser livre

dessa vontade de deitar-me,

em linhas,

e ser o verso denso

da falta de certeza,

onde me apresto,

renascendo.

A cabeça da beleza

A Carlos Drummond de Andrade

A cabeça da beleza

pende estonteada,

sobre o ombro do poeta.

Vomita

esboços de vida.

A cabeça da beleza,

cansada do eterno

nos limites do tempo,

ao vilipêndio de olhares curtos,

no colo do poeta,

deita-se,

em contornos de morte.

A cabeça da beleza,

já ôca,

sem forças,

abandona-se nos cantos de quaisquer poemas.

O inseto

Além do azul, do nublado,

um mundo calado habita outro

mundo contido

no meu mudo rosto.

Lâmina rasga o infinito,

mostrando um outro infinito

(possível?).

Sonhar, de tanto de viver,

se não vivesse para sonhar tanto.

Poder parar aqui mesmo,

perguntar a quem me ensinou

o sofrer, o cantar.

Porque canto,

pois que canto, mesmo

sem saber se canto, sofro

ou se sou sopro

do além, do nublado.

É quando pousa um inseto,

e mãos

limpam o céu.

Mas

Eis que um sopro de inspiração

entra por uma janela.

A minha.

Diz-me que sou profeta,

incerto,

pequeno,

sereno,

ferino.

Se pudesse rimar infinito,

se pudesse brincar infinito,

se pudesse ficar infinito,

calar,

mesclar

todas as sensações.

Eis que o sopro

esvai-se,

mas.

Réquiem

Em meus braços morreu a musa, a última.

Não sou culpado.

Delito aparente

sem razão, sem réu,

pelo qual pago desde sempre.

Não a matei, poetas do mundo,

apenas encenei profana Pietá,

acolhendo-a, após violentada

por séculos de arte.

Morreu a musa, a última,

eu,

sua sepultura.

Mancha

Deixo almas

de mim desprendidas

no tempo, que, de soslaio,

passa.

Não são rastros,

mas esse desgaste do ser,

manchando o mundo.

Em que tela imensa,

sem expressão cadente,

tudo é mácula e acidente?

Quiçá de algo mais denso,

pequena nódoa desgarrada,

rubra de ira.

E de tal obra,

quando vislumbrados os traços,

apenas bruma

disforme e suja,

o ser.

Delicatessen

Amassar a palavra-pão,

espremê-la,

não para a verdade,

mas para a expressão.

Vê-la em contorções,

Meneio de mão infantil

tangendo os nãos.

Torturá-la,

não por confissões.

Amar o verbo,

tornando-o nervo, alma,

toda a calma e a ebulição

do silêncio.

Sorte

A maior sorte,

ninguém pode ter:

não nascer.

Condenados à vida

(sorte para alguns),

às pequenas sortes

somos vulneráveis.

Que se realize o maior dos milagres:

a morte,

a grande sorte para todos.

Cromatismo

Mostro-me.

Ao pintar este quadro

com as cores da dor,

pincelo nas mãos do acaso

traços do ser.

Explicito algum fazer

a fazer-se,

neste pouco poema.

Na moldura do mundo,

encerro os séculos

para quem sabe olhar.

Nos contornos do sonho,

defino o indizível

para os insaciáveis.

Então a vida, inflada,

arremessa, nesta tela parca,

o farto espectro das cores do nada.

Estes

(in)versos

Beba Coca-Cola

Amigos vindos,

Idos.

Cadáveres

em degraus,

escada para o findo.

Uma vez vivo,

morte, a necessidade.

A sorte, meu vinho,

meu corpo, este copo,

arremessado contra o muro,

meu amigo.

Lata de Coca-Cola, vazia, na rua,

poema lido.

Expectação

Quando tudo

parece já ter sido soprado

pelo último vento da noite,

quando as luzes,

em sinfonia,

apagam-se nos prédios,

quando não existe quando,

como fazer nada em uma tarde de domingo.

Eu amo,

clamo calado

pelos muitos amigos

que me espreitam, ainda.

Sou tão lobo.

Olho para o céu

cravado de astros,

tatuagem no coração do universo,

sofro.

Profilaxia

Quando minha casa

lentamente fecha os olhos -

e aquela próxima palavra não vem -

sem constrangimentos,

pernilongos pousam

sobre o campo de versos escassos,

escassas metáforas,

pois escassos, poetas.

Mãos matam insetos até o amanhecer.

Itabaiana

Um raio de sol

ama intensamente uma gota d’água

sobre uma folha de mangueira.

Que solidão sente aquela gota d’água!

Poesia

Sinto-te, poesia,

como a um ente autônomo,

meu outro

que não volta a ser este,

visto que em ti não me reconheço.

És como um deus que crio,

que então me cria

e me abandona.

Autofagia

Lânguido,

na volúpia da solidão escolhida,

exercito a lâmina dos olhos.

Pela janela

vislumbro meu funeral sem glória.

Beijos de chuva

acariciam os seres ainda vivos,

que me arrastam.

Estranho cortejo.

Depositam meus restos

no cemitério de mim:

meu desejo.

Alteridade

A serra espreita a vila,

rimas de gente.

A vila margeia o rio,

versos de vida.

Um sol, não qualquer

(o dos meus olhos em sangue),

pinta o barro,

ilumina o sexo das pedras.

Peregrino,

Perdi-me na estrada de mim para mim.

Nessas imagens,

sou caco de vidro

a espreitar a serra, a vila, o rio,

e já não sei se morto,

ou outro.