Iracema: a suspensão do Outro em Alencar

Iracema: a suspensão do Outro em Alencar

Isaías Carvalho, 1998

in: Cadernos do Expogeo, #009/Julho, Salvador: Espaço Cultural Expogeo, 1998.

http://expogeo.blogspot.com.br/

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I - Introdução

"Tudo passa sobre a terra." Assim termina José de Alencar uma de suas narrativas de "fundação" da nacionalidade brasileira - Iracema. O tempo passa sobre a terra da "virgem dos lábios de mel"1 e, ao nos aproximarmos da comemoração dos 500 anos da descoberta/invenção do país, muito se tem falado e questionado sobre o que significa ser brasileiro, e mais ainda sobre como foi gestada a nação - seus mitos fundadores. É tarefa para muitos pensadores e muitos ensaios, a de delimitar os traços matriciais mais marcantes, especialmente nos textos fundacionais, sem a postura redutora de "[...] certa crítica comparatista em marcar o débito do escritor brasileiro, como se a cultura brasileira (assim como a sua economia) só pudesse ser constituída como massa falida."2

A intenção deste modesto trabalho é colocar as figuras alencarianas da índia Iracema, de Moacir - "[...] o primeiro filho que o sangue da raça branca gerou nessa terra da liberdade."3 - e de Martim - o que "[...] tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas."4 - em uma perspectiva profetizadora do que viria a se constituir um certo modo, por um lado, dignificante e heroicizante e, por outro, dependente e triste de ser brasileiro. Poderíamos dizer que nossos genitores nos abandonam à nossa sorte nessas terras de maravilhas ou que nós só existimos na medida em que nossas raízes ou são inventadas ou pouco profundas, ou até suspensas no ar.

Aqui temos duas questões principais - que se fundem em uma - às quais tentaremos responder. A primeira refere-se ao aspecto de profecia ou de "predestinação de uma raça"5 para ser órfã. A outra diz respeito à própria descrição da realização dessa profecia, ou da gênese psicológica da condição dos que habitam essa terra, consumada por Alencar nas aventuras e desventuras bélico-eróticas desses três personagens emblemáticos. Penetremos esse universo.

II - Invasão e Invenção

Não nos aprofundaremos aqui, por motivos de análise, na temática da ocultação do negro na literatura até e ainda após Alencar. Podemos, entretanto, de um modo geral, colocar nossas raízes africanas na mesma circunstância de orfandade dos outros personagens tidos como principais da nossa ascendência, o branco europeu e o índio. Zilá Bernd, em "Literatura e Identidade Nacional" (Porto Alegre, Editora da Universidade, Síntese Universitária/36) aborda o tema com maestria. Tomemos apenas um trecho inicial:

A literatura atua em determinados momentos históricos no sentido da união da comunidade em torno de seus mitos fundadores, de seu imaginário ou de sua ideologia, tendendo a uma homogeneização discursiva, à fabricação de uma palavra exclusiva, ou seja, aquela que pratica uma ocultação sistemática do outro, ou uma representação inventada do outro. No caso da Literatura Brasileira, este outro é o negro cuja representação é frequentemente ocultada, ou o índio cuja representação é, via de regra, inventada.

É, portanto, o segundo aspecto que tomaremos para embasar este trabalho - a invenção do heroísmo desse outro em Iracema, assim como em quase toda a obra de Alencar.* O discurso alencarino, por esse caráter de heroicização, é destoante daquele do conquistador europeu elaborado a respeito do nativo das Américas, representando-o como "tábula-rasa", já muito conhecido dos que adentram essa dimensão de apreensão mítica de nossas origens. Alencar se enquadra, entretanto, na dimensão de criador dentro do discurso hegemônico da época: o de (re)criar a História de acordo com a conveniência ou de suas visões de mundo. Assim, "[...] os nativos eram de carne-e-osso, mas não existiam." (SANTIAGO, 1982, p. 90), precisavam ser trazidos à luz. Iracema e Martim, portanto, podem ser vistos como uma representação alegórica da invasão/invenção do Novo Mundo - a terra paradisíaca, o locus amoenus (Hollanda, 1991) e disponível para este e a inserção construída daquela no discurso de exploração para uma posterior submissão e sacrifício.

Se nos referirmos à História como uma construção narrativa, poderemos vislumbrar mais claramente como o discurso dominante pode ocultar/eliminar/inventar o outro e as suas circunstâncias para embaçar a visão da violência dos processos de conquista e exploração e, como encontramos em Iracema, “[...] ao mesmo tempo, criar algo que positivamente nunca existira: o consórcio harmonioso entre o colonizador e o habitante natural da terra, a condescendência com o belo índio, o elogio e a heroicização do sacrifício da cultura autóctone”.6 Ou ainda, “[...] na sua representação da sociedade colonial dos séculos XVI e XVII Alencar submete os pólos nativo-invasor a um tratamento antidialético pelo qual se neutralizam as oposições reais”.7

Uma vez delimitados os processos de invenção sob os quais nasceram os três personagens, assim como o momento histórico em que foram colocados, retornaremos, nessa ótica do discurso nomeador, à nossa questão inicial. Veremos como nesses personagens Alencar, conscientemente ou não, descreveu profeticamente um estado “psicológico” essencial de nossa brasilidade: um sentimento de não-pertencimento ou de orfandade. Como se fôssemos almas suspensas no ar como uma intenção não realizada e que talvez nunca o seja.

III – Uma nação de órfãos e nostálgicos

O que há de profético na saga desses três personagens? É o mesmo estado de espírito que perpassa Iracema e Martim, após se encontrarem, que parece fundar um sentimento de não-enraizamento no solo pátrio definidor da postura do brasileiro diante de si próprio. Para além da exuberância da natureza circundante e do tom glorificante e heróico desse encontro harmônico inverossímil, o que se dá a seguir é uma realidade de morte, nostalgia e orfandade, mesmo que saibamos que, por trás desses fatos aparentemente isolados, há todo um discurso de exploração e de dominação português, do qual Alencar faz parte como personagem atuante e criativo da narrativa histórica hegemônica. Não é nossa tarefa aqui, de qualquer modo, avaliar o mérito ou o nível de comprometimento do autor mais representativo de sua época com as questões precisamente políticas de seu tempo, ele que foi de fato um político profissional.

“Iracema é a rola que o caçador tirou do ninho.” A própria personagem se define como um ser sem raiz. Retirada do ninho, a ave poderá ser aprisionada, mas ainda assim terá as asas, as quais não servirão para vôos muito altos. Iracema ficará como que suspensa em uma dimensão de submissão às circunstâncias irreversíveis em que culminou a sua saída da tribo, ou melhor, a sua traição à tribo ao entregar ao branco Martim o segredo da Jurema8 em um processo de sedução implacável. Agora na nação pitiguara, aliada de Martim, mas sem a ela pertencer (pois que pertence apenas ao esposo branco, como uma escrava conquistada pelo amor), “[...] os olhos de Iracema, estendidos pela floresta, viram o chão juncado de cadáveres de seus irmãos; e longe o bando dos guerreiros tabajaras que fugia em nuvem negra de pó. Aquele sangue que enrubescia a terra, era o mesmo sangue brioso que lhe ardia nas faces de vergonha.” (Iracema, cap. XVIII) Seu marido acabara de ajudar a nação pitiguara, inimiga tradicional da sua tribo, a derrotar os seus. A imagem que se tem aqui é a de alguém que perdeu os seus referenciais, é de uma órfã cultural. Ela não é de uma tribo nem de outra, muito menos pertence ao universo de Martim, que é impensável para ela. Resta-lhe, portanto, sacrificar-se em face da impotência existencial a que chegou, e lhe é facultado o sacrifício da maternidade, no qual a mãe tem que morrer para que o filho venha a existir, para que este possa fundar um novo espaço e um novo tempo quiçá possíveis. Ainda antes do parto, já prevendo o seu destino, diz Iracema a seu marido – este cada vez mais ausente mirando o mar em busca de navios e visões de sua terra do além mar: “[...] quando teu filho deixar o seio de Iracema, ela morrerá, como o abati depois que deu seu fruto. Então o guerreiro branco não terá mais quem o prenda na terra estrangeira.” (cap. XXVIII)

Iracema não conseguiu enxergar que Martim não estava necessariamente preso na terra estrangeira. Ele era o único que tinha o poder da mobilidade. O que havia chegado de terras longínquas pelo mar. O que havia sido hospitaleiramente recebido pelo pajé tabajara, pai de Iracema. O que era aliado da tribo pitiguara. Enfim, um aventureiro apresentado de forma idealizada e heroicizada por Alencar. No entanto, é essa fluidez excessiva e essa mobilidade que o tornam também um ser suspenso no ar. Um ser quase onipotente pela possibilidade de passear pelos espaços que para os demais era de fato o único, o limite. Isso nada mais é que a representação da superioridade do europeu sobre os "selvagens". Por outro lado, se tomarmos Martim naquela concepção de estado psicológico fundacional do “ser brasileiro”, vamos encontrá-lo, já casado com Iracema, passando “[...] os já tão breves, agora longos sóis, na praia, ouvindo gemer o vento e soluçar as ondas. Com os olhos engolfados na imensidade do horizonte, buscava, mas embalde, descobrir no azul diáfano a alvura de uma vela perdida nos mares.”(cap. XXVII) E em outro trecho do mesmo capítulo: “[...] e lá ficava cismando em seu destino. Às vezes lhe vinha à mente a ideia de tornar à sua terra e aos seus.” É uma nostalgia que beira à melancolia. Essa sensação recorrente de falta, de ausência que, ademais, impregna todo o imaginário da construção da pátria, inclusive o próprio Alencar quando se refere à literatura nacional incipiente, que é sempre devedora de Portugal.

Por fim, podemos olhar para o personagem que só existiu enquanto parte desse cenário complexo modestamente abordado ou bordeado acima, mas que representa muito para a nossa análise. Mais uma vez é Iracema quem prenuncia a sua sorte ao nomear o fruto da sedução violenta ou da violência sedutora de que foi a vítima condescendente – pelo menos no imaginário criado pelo discurso hegemônico para desculpar o genocídio indígena de tantos séculos e aqui corroborado por Alencar: “Tu és Moacir, o nascido do meu sofrimento.” (cap. XXX), o nascido da paixão. Paixão também na acepção de sacrifício, ou até na “[...] doce escravidão que Machado de Assis viu em Iracema.”9 Podemos ver aí mais um emblema da nossa gênese enquanto nação: somos órfãos. Órfãos porque nossa mãe morreu por nós ou para nosso infortúnio. E se tomarmos, talvez levemente levianamente, uma ideia geral do papel fálico do processo colonizador sobre os excluídos e ocultados de toda sorte, podemos dizer que somos órfãos de nossa mãe justiça ou de nossa mãe tolerância das diferenças. Fomos deixados à mercê de um pai explorador e conquistador, tanto é que não há referências a Moacir enquanto participante de um processo novo no capítulo final de Iracema, quando se estabelece a construção e a consolidação de fato do processo de dominação e apropriação. É como se fôssemos, por meio da imagem de Moacir, uma promessa sempre adiada para o futuro, o que é de fato uma componente do nosso imaginário. Afinal, somos o país do futuro, o gigante adormecido.

IV – Considerações finais

Se considerarmos a História como a construção da vida e da realidade através do discurso – ou dos discursos dominantes –, José de Alencar tem o seu lugar como um “historiador”. Se aceitarmos que Iracema, Martim e Moacir são a dupla ou a multifacetada representação de um processo histórico fundacional – como defendido neste trabalho – eles são as representações dos discursos da época em que foram criados. Entretanto, podemos perceber pelo já exposto acima que as questões são basicamente as mesmas quando nos aproximamos de outro discurso emblemático: as comemorações pela descoberta do Brasil ao romper o próximo milênio.

Se atentarmos para a questão indígena hoje, veremos que a obra de Alencar foi profética no sentido de retratar essa situação de “suspensão” do elemento indígena no processo de civilização. O índio de nosso tempo, como Iracema, não tem presente, pois lhe são negados os canais de inserção na economia e nos costumes da nação não indígena, para o que se faz uso das chamadas reservas indígenas, que são necessárias e ao mesmo tempo excludentes. O traço da impotência ainda é o mais marcante. Esse índio também não tem futuro, pois, mesmo que venha a sobreviver a todos os tipos de males do nosso tempo, estará fora do discurso ainda, isto é, terá que ser reinventado de novo. Assim, o índio é condenado ao passado, este conhecido pelo filtro inventor dos exploradores. É a própria impotência feita carne.**

Podemos, ainda, arriscar fazer um paralelo entre a imagem de Martim a olhar para o mar esperando um navio que o leve para a Europa, que o reintegre à "civilização", e a situação do Brasil hoje diante da crise globalizada que parece relegar o País a um papel de expectador. Pode ser que sejamos um povo a mirar o horizonte do Hemisfério Norte à espera de uma condução para a civilização. Que a(s) História(s) nos ensine(m) algo. Que não tenhamos que nos sacrificar mais, hoje que somos todos índios, de alguma forma metafórica, em relação ao mundo desenvolvido!

NOTAS

* Dizemos “em quase toda a obra de Alencar” porque em sua última obra sobre a questão da relação do índio com o colonizador – Ubirajara – pode-se encontrar, como Alfredo Bosi escreve em Um mito sacrificial: o indianismo de Alencar, “[...] a rara exceção, [...] uma nota etnográfica aposta à lenda de Ubirajara. [...] Trata-se de uma poetização da vida indígena anterior ao descobrimento. A nota sugere uma leitura da colonização portuguesa como um feito de violência.”

** É claro que há exceções. Muitas tribos estão se inserindo no processo econômico e se aculturando, mas ainda não se pode fazer afirmações precisas quanto ao futuo dessas relações.

1 O próprio Alencar explica em nota, na primeira página: "Iracema - em Guarani significa lábios de mel, de ira - mel, e tembe - lábios. Tembe na composição altera-se em ceme, como na palavra cemeiba."

2 SANTIAGO, Silviano. Liderança e Hierarquia em Alencar. In: Vale Quanto Pesa. Paz e Terra, RJ, 1982. 89-115.

3 ALENCAR, José de. Iracema. Ática. Série Bom Livro, 33. ed. São Paulo, 1998. p. 74.

4 Ibid. p. 17.

5 Ibid. Capítulo XXXIII: "O cajueiro floresceu quatro vezes depois que Martim partiu das praias do Ceará, levando no frágil barco o filho e o cão fiel. (...) O primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da terra da pátria. Havia aí a predestinação de uma raça?"

6 CUNHA, Eneyda Leal. Literatura e Identidade. In: Revista do Centro de Estudos Hélio Simões, n. 1, 1998.

7 BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo. Cia das Letras, 1995. p. 176-193.

8 Transcreveremos aqui a nota de rodapé que o próprio Alencar colocou em Iracema: “Jurema: Árvore meã, de folhagem espessa; dá um fruto excessivamente amargo, de cheiro acre, do qual juntamente com as folhas e outros ingredientes preparavam os selvagens uma bebida, que tinha o efeito de haxixe, de produzir sonhos tão vivos e intensos, que a pessoa sentia com delícias e como se fossem realidade as alucinações agradáveis da fantasia excitada pelo narcótico. A fabricação desse licor era um segredo, explorado pelos Pajés, em proveito de sua influência.[...]

9 Consideramos conveniente neste ponto fazermos a transcrição do trecho ao qual pertence a citação acima (BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo. Cia das Letras, 1995. p. 176-193): “É minha hipótese que o mito sacrificial, latente na visão alencariana dos vencidos, se tenha casado com o seu esquema feudalizante de interpretação da nossa história. Dentro de um contexto marcado pelas relações de senhor e servo, no qual o domínio do primeiro e a dedicação do segundo parecem conaturais, assumem uma lógica própria as personagens de O Guarani e a doce escravidão que Machado de Assis viu em Iracema.”

Referências

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo. Cia das Letras, 1995. p. 176-193.

CUNHA, Eneyda Leal. Literatura e Identidade. In: Revista do Centro de Estudos Hélio Simões. n. 1. Ilhéus: EDITUS, 1998. p. 175-89

ALENCAR, José de. Iracema. 33. ed. São Paulo: Ática. Série Bom Livro, 1998.

SANTIAGO, Silviano. Liderança e Hierarquia em Alencar. In: Vale Quanto Pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

BERND, Zilá. Literatura e Identidade Nacional. Editora da Universidade. Síntese Universitária/36, Porto Alegre. p. 21-46.

HOLLANDA, Sérgio Buarque de. O mito americano. Capítulos de Literatura Colonial. São Paulo: Brasiliense, 1991.

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