FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber

Fichamentos diplomáticos de Isaias Carvalho

Annotated Reading Records by Isaias Carvalho

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FOUCAULT, Michel. As unidades do discurso. In: _____. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, s.d.. p. 23-34.

p.23-24 O emprego dos conceitos de descontinuidade, de ruptura, de limiar, de limite, de série, de transformação, coloca, a qualquer análise histórica, não somente questões de procedimento, mas também problemas teóricos. (...) nessas disciplinas tão incertas de suas fronteiras, tão indecisas em seu conteúdo, que se chamam história das idéias, ou do pensamento, ou das ciências, ou dos conhecimentos.

{1}Há, em primeiro lugar, um trabalho negativo a ser realizado: libertar-se de todo um jogo de noções que diversificam, cada uma à sua maneira, o tema da continuidade. (...) tradição: ela visa dar uma importância temporal singular a um conjunto de fenômenos, ao mesmo tempo sucessivos e idênticos (ou, pelo menos, análogos); (...) graças a ela, as novidades podem ser isoladas sobre um fundo de permanência, e seu mérito transferido para a originalidade, o gênio, a decisão própria dos indivíduos. (...) influência, que fornece um suporte (...) aos fatos de transmissão e de comunicação; (...) que liga (...) unidades definidas como indivíduos, obras, noções ou teorias. (...) desenvolvimento e evolução: elas [essas noções] permitem reagrupar uma sucessão de acontecimentos dispersos; relacioná-los a um único e mesmo princípio organizador; submetê-los ao poder exemplar da vida (...); descobrir, já atuantes em cada começo, um princípio de coerência e o esboço de uma unidade futura; controlar o tempo por uma relação continuamente reversível entre uma origem e um termo jamais determinados, sempre atuantes. {na CG – o processo? A obra já está em seu esboço?} (...) “mentalidade” ou (...) “espírito”, que permitem estabelecer entre os fenômenos simultâneos ou sucessivos de uma determinada época uma comunidade de sentido, ligações simbólicas, um jogo de semelhança e de espelho – ou que fazem sugerir, como princípio de unidade e de explicação, a soberania de uma consciência coletiva. É preciso pôr em questão, novamente, essas sínteses acabadas, esses agrupamentos que, na maioria das vezes, são aceito antes de qualquer exame, esses lanços cuja validade é reconhecida desde o início (...).

p.24-25 {2} É preciso também que nos inquietemos diante de certos recortes ou agrupamentos que já nos são familiares. É possível admitir, tais como são, a distinção dos grandes tipos de discurso, ou a das formas ou dos gêneros que opõem, umas às outras, ciência, literatura, filosofia, religião, história, ficção etc., e que as tornam espécies de grandes individualidade históricas? (...) afinal, a “literatura” e a “política” são categorias recentes que só podem ser aplicadas à cultura medieval, ou mesmo à cultura clássica, por uma hipótese retrospectiva e por um jogo de analogias formais ou de semelhanças semânticas; mas nem a literatura, nem a política, nem tampouco a filosofia e as ciências, articulavam o campo do discurso no século XVII ou XVII, como o articularam no século XIX. (...) esses recortes (...) são sempre, eles próprios, categorias reflexivas, princípios de classificação, regras normativas, tipos institucionalizados: são, por sua vez, fatos de discurso que merecem ser analisados ao lado dos outros, que com eles mantêm, certamente, relações complexas, mas que não constituem seus caracteres intrínsecos, autóctones e universalmente reconhecíveis.

p.25-26 {3} (...) as unidades que é preciso deixar em suspenso são as que se impõem da maneira mais imediata: as do livro e da obra. (...) será a mesma [unidade] quando se trata de poemas, de uma coletânea de fragmentos póstumos, do Traité des Coniques ou de um tomo da Histoire de France de Michelet? (...) Em outros termos, a unidade material do volume [livro] não será uma unidade fraca, acessória, em relação à unidade discursiva a que ela dá apoio? Mas essa unidade discursiva, por sua vez, será homogênea e uniformemente aplicável?

p.26 Quanto à obra, os problemas por ela levantados são mais difíceis ainda. (...) Uma soma de textos que podem ser denotados pelo signo de um nome próprio. (...) será que basta juntar aos textos publicados pelo autor os que ele planejava editar e que só permaneceram inacabados pelo fato de sua morte? Será preciso incluir, também, tudo que é rascunho, primeiro projeto, correções e rasuras dos livros? Será preciso reunir esboços abandonados? E que importância dar às cartas, às notas, às conversas relatadas, aos propósitos transcritos por seus ouvintes, enfim, a este imenso formigamento de vestígios verbais que um indivíduo deixa em torno de si, no momento de morrer, e que falam, em um entrecruzamento indefinido, tantas linguagens diferentes? (...) Na verdade, se se fala com tanto prazer e sem maiores questionamentos sobre a “obra” de um autor, é porque a supomos definida por uma certa função de expressão. Admite-se que deve haver um nível (tão profundo quanto é preciso imaginar) no qual a obra se revela, em todos os seus fragmentos, mesmo os mais minúsculos e os menos essenciais (...) Mas vê-se logo que tal unidade, longe de ser apresentada imediatamente, é constituída por uma operação; que essa operação é interpretativa (já que decifra, no texto, a transcrição de alguma coisa que ele esconde e manifesta ao mesmo tempo); que, finalmente, a operação que determina o opus em sua unidade e, por conseguinte, a própria obra, não será a mesma no caso do autor do Théâtre et son double ou no caso do autor do Tractatus, e que, assim, não é no mesmo sentido que se falará uma “obra”. A obra não pode ser considerada como unidade imediata, nem como unidade certa, nem como unidade homogênea.

p.27-28 {4} Finalmente, eis a última precaução para colocar fora de circuito as continuidade irrefletida pelas quais se organizam, de antemão, os discurso que se pretende analisar: renunciar a dois temas que estão ligados um ao outro e que se opõem. Um quer que jamais seja possível assinalar, na ordem do discurso, a irrupção de um acontecimento verdadeiro; que além de qualquer começo aparente, há sempre uma origem secreta – tão secreta e tão originária que dela jamais poderemos nos reapoderar inteiramente. (...) A esse tema se liga um outro, segundo o qual todo discurso manifesto repousaria secretamente sobre um já-dito; e que este já-dito não seria simplesmente uma frase já pronunciada, um texto já escrito, mas um “jamais-dito”, um discurso sem corpo, uma voz tão silenciosa quanto um sopro, uma escrita que não é senão o vazio de seu próprio rastro. (...) o discurso manifesto não passaria, afinal de contas, da presença repressiva do que ele não diz; (...) O primeiro motivo condena a análise histórica do discurso as ser busca e repetição eu ma origem que escapa a toda determinação histórica; o outro a destina a ser interpretação ou escuta de um já-dito que seria, ao mesmo tempo, um não-dito. É preciso renunciar a todos esses temas que têm por função garantir a infinita continuidade do discurso e sua secreta presença no jogo de um ausência sempre reconduzida. (...) Não é preciso remeter o discurso à longínqua presença da origem; é preciso tratá-lo no jogo de sua instância.

p.29 Essas formas prévias de continuidade, (...) é preciso, pois, mantê-las em suspenso. Não se trata, é claro, de recusá-las definitivamente, mas sacudir a quietude com a qual as aceitamos; mostrar que elas não se justificam por si mesmas, que são sempre o efeito de uma construção cujas regras devem ser conhecidas e cujas justificativas devem ser controladas (...). Trata-se de reconhecer que elas talvez não sejam, afinal de contas, o que se acreditava que fossem à primeira vistas. Enfim, que exigem uma teoria; e que essa teoria não pode ser elaborada sem que apareça, em sua pureza não-sintética, o campo dos fatos do discurso a partir do qual são construídas.

p.30-31 Aparece, assim, o projeto de uma descrição dos acontecimentos discursivos como horizonte para a busca das unidades que aí se formam. (...) trata-se, então, de definir, a partir desse conjunto que tem valor de amostra, regras que permitam construir eventualmente outros enunciados diferentes daqueles. (...) A descrição de acontecimentos do discurso coloca uma outra questão bem diferente: como apareceu um determinado enunciado, e não outro em seu lugar?

p.31 Vê-se igualmente que essa descrição do discurso se opõe à história do pensamento. (...) A análise do pensamento é sempre alegórica em relação ao discurso que utiliza. Sua questão, infalivelmente, é: o que se dizia no que estava dito? A análise do campo discursivo é orientada de forma inteiramente diferente; trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação; (...) Não se busca, sob o que está manifesto, a conversa semi-silenciosa de um outro discurso: deve-se mostrar por que não poderia ser outro, como exclui qualquer outro, como ocupa, no meio dos outros e relacionado a eles, um lugar que nenhum outro poderia ocupar. {originalidade, aura?}

p.32-33 {A} (...) inicialmente, restituir ao enunciado sua singularidade de acontecimento e mostrar que a descontinuidade não é somente um desses grandes acidentes que produzem uma falha na geologia da história, mas já no simples fato do enunciado (...); o que se tenta observar é essa incisão que ele constitui, essa irredutível (...) emergência. (...) um enunciado é sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente. Trata-se de um acontecimento estranho, por certo: inicialmente porque está ligado, de um lado, a um gesto de escrita ou à articulação de uma palavra, mas, por outro lado, abre para si mesmo uma existência remanescente no capo de uma memória, ou na materialidade dos manuscritos, dos livros e de qualquer forma de registro; em seguida, porque é único como todo acontecimento, mas está aberto à repetição, à transformação, à reativação; finalmente, porque está ligado não apenas a situações que o provocam, e a conseqüências por ele ocasionadas, mas, ao mesmo tempo, e segundo uma modalidade inteiramente diferente, a enunciados que o precedem e o seguem.

{B} (...) para estarmos seguros de não relacioná-la com operadores de síntese que sejam puramente psicológicos (a intenção do autor, a forma de seu espírito, o rigor de seu pensamento, os temas que o obcecam, o projeto que atravessa sua existência e lhe dá significação) e podermos apreender outras formas de regularidade, outros tipos de relações. Relações entre os enunciados (...); relações entre enunciados ou grupos de enunciados {uma obra?} e acontecimentos de uma ordem inteiramente diferente (técnica, econômica, social, política). Fazer aparecer, em sua pureza, o espaço em que se desenvolvem os acontecimentos discursivos não é tentar restebecê-lo em um isolametne que nada poderia superar; não é fechá-lo em si mesmo; é tornar-se livre para descrever, nele e fora dele, jogos de relações.

{C}p.33 Eis o terceiro interesse de tal descrição dos fatos de discurso libertando-os de todos os agrupamentos considerados como unidades naturais, imediatas e universais, temos a possibilidade de descrever outras unidades, mas, dessa vez, por um conjunto de decisões controladas. Contanto que se definam claramente as condições, poderia ser legítimo constituir, a partir de relações corretamente descritas, conjuntos que não seriam arbitrários, mas que, entretanto, teriam permanecido invisíveis.

p.34 (...) Como estarmos certos de que escaparemos de recortes como os da obra, de categorias como as da influência, a menos que proponhamos, desde o início, domínios bastante amplos, escalas cronológica bastante vastas? Finalmente, como estarmos certos de que não nos prenderemos a todas essas unidades ou síntese pouco refletidas que se referem ao sujeito falante, ao sujeito do discurso, ao autor do texto, enfim, a todas essas categoria antropológicas? Ao menos, talvez, que consideremos o conjunto dos enunciados através dos quais essas categorias se constituíram – o conjunto dos enunciados que escolheram como “objeto” o sujeito dos discursos (seu próprio sujeito) e que se dispuseram a desenvolvê-lo como campo de conhecimentos?

FOUCAULT, Michel. A Descrição Arqueológica (1-5). In: _____. A Arqueologia do Saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, s/d, p. 153-200.

1 – ARQUEOLOGIA E HISTÓRIA DAS IDÉIAS

p.156 (...) O que pode, então, oferecer a “arqueologia”, que outras descrições não seriam capazes de dar?

(...) Eu não teria o direito de estar tranqüilo enquanto não me separasse da “história das idéias”, enquanto não mostrasse em que a análise arqueológica se diferencia de suas descrições.

{dois papéis da história das idéias} p.156-158 (...) Por um lado, ela conta a história dos elementos secundários e das margens. Não a história das ciências, mas a dos conhecimentos imperfeitos, mas fundamentados, que jamais puderam atingir, ao longo de uma vida obstinada, a forma de cientificidade (...). História não da literatura, mas do rumor lateral, da escrita cotidiana e tão rapidamente apagada que nunca adquire o status da obra ou que imediatamente o perde (...). Análise das opiniões mais que do saber, dos erros mais que da verdade; não das formas do pensamento, mas dos tipos de mentalidade.

Mas, por outro lado, a história das idéias se atribui a tarefa de penetrar as disciplinas existentes, tratá-las e reinterpretá-las. Constitui, pois - mais do que um domínio marginal -, um estilo de análise, um enfoque. (...) segue a gênese de sistemas e obras, a partir das representações recebidas ou adquiridas. (...) A história das idéias é, então, a disciplina dos começos e dos fins, a descrição das continuidades obscuras e dos retornos, a reconstituição dos desenvolvimentos na forma linear da história. (...) Torna-se, então, a disciplina das interferências, a descrição dos círculos concêntricos que envolvem as obras, as sublinham, as unem umas às outras e as inserem em tudo que não é obra.

p.158 Gênese, continuidade, totalização: eis os grandes temas da história das idéias, através dos quais ela se liga a uma certa forma, hoje tradicional, de análise histórica. (...) Ora, a descrição arqueológica é precisamente abandono da história das idéias, recusa sistemática de seus postulados e de seus procedimentos, tentativa de fazer uma história inteiramente diferente daquilo que os homens disseram.

P. 159-160 Alguns princípios da análise arqueológica

1 – A arqueologia busca definir não os pensamentos, as representações, as imagens, os temas, as obsessões que se ocultam ou se manifestam nos discursos, mas os próprios discursos, enquanto práticas que obedecem a regras. Ela não trata o discurso como documento, como signo de outra coisa (...); ela se dirige ao discurso em seu volume próprio, na qualidade de monumento. Não se trata de uma disciplina interpretativa: não busca um “outro discurso” mais oculto. Recusa-se a ser “alegórica”.

2 – A arqueologia não procura encontrar a transição contínua e insensível que liga, em declive suave, os discursos ao que os precede, envolve ou segue. (...) O problema dela é, pelo contrário, definir os discursos em sua especificidade; mostrar em que sentido o jogo das regras que utilizam é irredutível a qualquer outro; segui-los ao longo de suas arestas exteriores para melhor salientá-los.

3 – A arqueologia não é ordenada pela figura soberana da obra; não busca compreender o momento em que esta se destacou do horizonte anônimo. Não quer reencontrar o ponto enigmático em que o individual e o social se invertem um no outro. (...) A instância do sujeito criador, enquanto razão de ser de uma obra e princípio de sua unidade, lhe é estranha.

4 – (...) [a arqueologia] não se propõe a recolher esse núcleo fugidio onde autor e obra trocam de identidade; onde o pensamento permanece ainda o mais próximo de si, na forma ainda não alterada do mesmo, e onde a linguagem não se desenvolveu ainda na dispersão espacial e sucessiva do discurso. (...) não tenta repetir o que foi dito, reencontrando-o em sua própria identidade. (...) é a descrição sistemática de um discurso-objeto.

2 – O ORIGINAL E O REGULAR

p. 161-162 Em geral, a história das idéias trata o campo dos discursos como um domínio de dois valores; todo elemento que aí é demarcado pode ser caracterizado como antigo ou novo; inédito ou repetido; tradicional ou original; semelhante a um tipo médio ou desviante. Pode-se, pois, distinguir duas categorias de formulações: {1} aquelas valorizadas e relativamente pouco numerosas, que aparecem pela primeira vez, que não têm antecedentes semelhantes, que vão eventualmente servir de modelo às outras e que, nesse caso, merecem passar por criações; e {2} aquelas banais, cotidianas, maciças, que não são responsáveis por si mesmas e que derivam, às vezes para repeti-lo textualmente, do que já foi dito. (...) cabe ao historiador reencontrar, a partir desses pontos isolados, dessas rupturas sucessivas, a linha contínua de uma evolução. (...) No primeiro caso, a história das idéias descreve uma sucessão de acontecimentos de pensamento; no segundo, temos camadas ininterruptas de efeitos; no primeiro, reconstituímos a emergência das verdades ou das formas; no segundo restabelecemos as solidariedades esquecidas e remetemos os discursos à sua relatividade.

p.163 Será na mesma série e segundo o mesmo modo de anterioridade que Saussure é “precedido” por Peirce e sua semiótica, por Arnauld e Lancelot com a análise clássica do signo, pelos estóicos e a teoria do significante?

p.163-164 (...) Em que sentido e segundo que critérios pode-se afirmar: “isto já foi dito”; (...)? O que é identidade, parcial ou total, na ordem do discurso? (...) Não há semelhança em si, imediatamente reconhecível, entre as formulações: sua analogia é um efeito do campo discursivo em que a delimitamos.

p. 164-165 A descrição arqueológica (...), no nível que se coloca, a oposição originalidade-banalidade não é, portanto, pertinente(...). Procura somente estabelecer a regularidade dos enunciados. (...) A regularidade (...) não caracteriza uma certa posição central entre os limites de uma curva estatística (...). Não se deve, portanto, opor a regularidade de um enunciado à irregularidade de outro (que seria menos esperado, mais singular, mais rico em inovações), mas sim a outras regularidades que caracterizam outros enunciados.

p.166-170 Essa análise das regularidades enunciativas se abre em diversas direções que talvez devam ser, um dia, exploradas com mais cuidado.

1 – (...) É preciso, pois, distinguir entre analogia lingüística (ou tradutibilidade), identidade lógica (ou equivalência) e homogeneidade enunciativa. São dessa homogeneidades – e exclusivamente – que a arqueologia se encarrega.

(...) Não se pode mais dizer que uma descoberta, a formulação de um princípio geral, ou a definição de um princípio geral, ou a definição de um projeto, inaugura – e de forma maciça – uma fase nova na história do discurso. Não se deve mais procurar o ponto de origem absoluta (...). As homogeneidades (e heterogeneidades) enunciativas se entrecruzam com continuidades (e mudanças) lingüísticas, com identidades (e diferenças) lógicas, sem que umas e outras caminhem no mesmo ritmo ou se dominem necessariamente. Entretanto deve existir entre elas um certo número de relações e interdependências cujo domínio, sem dúvida muito complexo, deverá ser inventariado.

2 – Outra direção de pesquisa: as hierarquias internas às regularidades enunciativas. (...) Todo o campo enunciativo é, ao mesmo tempo, regular e vigilante: é insone; (...) As regras jamais se apresentam nas formulações; atravessam-nas e constituem para elas um espaço de coexistência (...).

(...) Nas tão confusas unidades chamadas “épocas”, ela [a arqueologia] faz surgirem, com sua especificidade, “períodos enunciativos” que se articulam no temo dos conceitos, nas fases teóricas, nos estágios de formalização e nas etapas de evolução lingüística, mas sem se confundir com eles.

3 – AS CONTRADIÇÕES

P.171 A história das idéias, normalmente, dá um crédito de coerência ao discurso que ela analisa (...), um princípio de coesão que organiza discurso e lhe restitui uma unidade oculta. Essa lei de coerência é uma regra heurísitca, uma obrigação de procedimento, quase uma coação moral da pesquisa (...); descobre a organização interna de um texto, a forma de desenvolvimento de uma obra individual, ou ponto de encontro de discursos diferentes.

p.173 De qualquer forma, a análise [na história das idéias] deve suprimir, sempre que possa, a contradição.

A contradição funciona, então, ao longo do discurso, como o princípio de sua historicidade.

A história das idéias reconhece, pois, dois níveis de contradições: o das aparências, que se resolve na unidade profunda do discurso, e o dos fundamentos, que dá lugar ao próprio discurso.

p. 174 Para a análise arqueológica, as contradições não são nem aparência a transpor, nem princípios secretos que seria preciso destacar.

p.175 (...) Em relação a uma história das idéias que desejaria fundir as contradições na unidade seminoturna de uma figura global, ou transmutá-las em um princípio geral, abstrato e uniforme de interpretação ou de explicação, a arqueologia descreve os diferentes espaços de dissensão.

Tipos de contradição:

p.175-176 {1} Certas contradições localizam-se apenas no plano das proposições ou das assertivas, sem afetar em nada o regime enunciativo que as tornou possíveis (...). (...)assim, o fixismo de Lineu é contestado pelo evolucionismo de Darwin, mas somente na medida em que se neutraliza a diferença entre a História natural, a que pertence o primeiro, e a biologia, a que se relaciona o segundo. Essas são contradições extrínsecas que remetem à oposição entre formações discursivas distintas.

p.176 (...) a descrição arqueológica descreve o que se poderia chamar as contradições intrínsecas: as que se desenrolam na própria formação discursiva e que, nascidas em um ponto do sistema das formações, fazem surgir subsistemas (...). A oposição, aqui, não é terminal: não são duas proposições contraditórias a propósito do mesmo objeto, nem duas utilizações incompatíveis do mesmo conceito, mas duas maneiras de formar enunciados (...). (...) pode-se mostrar em que ponto derivam ambos de uma única e mesma positividade (...). Essas oposições intrínsecas é que são pertinentes para a análise arqueológica.

p.176-177 {2} Os diferentes níveis: [Uma contradição arqueologicamente intrínseca] é um fenômeno complexo que se reparte em diferentes planos da formação discursiva.

- uma inadequação dos objetos

- uma divergência das modalidades enunciativas

- uma incompatibilidade dos conceitos

- uma exclusão das opções teóricas

p.177-178 {3} As funções: Algumas [dessas formas de oposição] asseguram um desenvolvimento adicional do campo enunciativo: abrem seqüências de argumentação, de experiência, de verificações, de inferências diversas; permitem a determinação de objetos novos, suscitam novas modalidades enunciativas (...). Outras induzem uma reorganização do campo discursivo: colocam a questão da tradução possível de um grupo de enunciados em outro, do ponto de coerência que poderia articulá-los, de sua integração em um espaço mais geral (...). Outras oposições têm um papel crítico: põem em jogo a existência e a “aceitabilidade” da prática discursiva; definem o ponto de sua impossibilidade efetiva e de seu recuo histórico (...).

p.178 Uma formação discursiva não é, pois, o texto ideal, contínuo e sem aspereza, que corre sob a multiplicidade das contradições e as resolve na unidade calma de um pensamento coerente; (...) É antes um espaço de dissensões múltiplas; um conjunto de oposições diferentes cujos níveis e papéis devem ser descritos. A análise arqueológica revela o primado de uma contradição que tem seu modelo na afirmação e na negação simultânea de uma única e mesma proposição, mas não para nivelar todas as oposições em formas gerais de pensamento e pacificá-las à força por meio de um a priori coator. Trata-se, ao contrário, de demarcar, em uma prática discursiva determinada, o ponto em que elas se constituem, definir a forma que assumem, as relações que estabelecem entre si e o domínio que comandam. Em suam, trata-se de manter o discurso em suas asperezas múltiplas e de suprimir, em conseqüência disso, o tema de uma contradição uniformemente perdida e reencontrada, resolvida e sempre renascente, no elemento indiferenciado do Logos.

4 – OS FATOS COMPARATIVOS

P.180 A análise arqueológica individualiza e descreve formações discursivas(...). Bem diferente (...) das descrições epistemológicas ou “arquitetônicas” que analisam a estrutura interna de uma teoria, o estudo arqueológico está sempre no plural: ele se exerce em uma multiplicidade de registros; percorre interstícios e desvios (...).

p.181-189 {As análises arqueológicas são muito diferentes das que são praticadas comumente}:

p.181-183 * 1. A comparação, nesse caso, é sempre limitada e regional. Longe de querer fazer aparecerem formas gerais, a arqueologia procura desenhar configurações singulares. (...) São [as] relações internas e externas que caracterizam a História natural, a Análise das riquezas e a Gramática geral como um conjunto específico e permitem que nelas se reconheça uma configuração interdiscursiva.

p.182 (...) Qual o privilégio do que você descreveu? – Privilégio algum; é apenas um dos conjuntos descritíveis; se, na verdade, retomássemos a Gramática geral e se procurássemos definir suas relações com as disciplinas históricas e a crítica textual, veríamos, seguramente, desenhar-se um sistema inteiramente diferente de relações (...).

p.183 O horizonte ao qual se dirige a arqueologia não é, pois, uma ciência, uma racionalidade, uma mentalidade, uma cultura; é um emaranhado de interpositividades cujos limites e pontos de cruzamentos não podem ser fixados de imediato. (...) A comparação arqueológica não tem efeito unificador, mas multiplicador.

p.183-186 * 2. O que [a análise arqueológica] quer libertar é, inicialmente (...), o jogo das analogias e das diferenças, tais como aparecem no nível das regras de formação. Isso implica cinco tarefas distintas:

a) Mostrar como elementos discursivos inteiramente diferentes podem ser formados a partir de regras análogas (...); mostrar, entre formações diferentes, os isomorfismos arqueológicos.

b) Mostrar até que ponto essas regras se aplicam ou não do mesmo modo. (...) definir o modelo arqueológico de cada formação.

c) Mostrar como conceitos perfeitamente diferentes (...) ocupam uma posição análoga na ramificação de seu sistema de positividade – que são dotados, assim, de uma isotopia arqueológica – ainda que seu domínio de aplicação, seu grau de formalização, sobretudo sua gênese histórica, os tornem totalmente estranhos uns aos outros.

d) Mostrar, em compensação, como uma única e mesma noção (...) pode abranger dois elementos arqueologicamente distintos (...); indicar as defasagens arqueológicas.

e) Mostrar, finalmente, como, de uma positividade a outra, podem ser estabelecidas relações de subordinação ou de complementaridade (...): estabelecer as correlações arqueológicas.

p.185 (...) Uma configuração de interpositividade não é um grupo de disciplinas vizinhas; não é somente um fenômeno observável de semelhança; não é somente a relação global de diversos discursos com algum outro; é a lei de suas comunicações.

p.186-189 * 3. A arqueologia faz também com que apareçam relações entre as formações discursivas e domínios não-discursivos (instituições, acontecimentos políticos, práticas e processos econômicos). Tais aproximações não têm por finalidade revelar grandes continuidades culturais ou isolar mecanismos de causalidade.

p.187 A arqueologia situa sua análise em um outro nível: os fenômenos de expressão, de reflexos e de simbolização são, para ela, apenas os efeitos de uma leitura global em busca das analogias formais ou das translações de sentidos (...). Ela quer mostrar não como a prática política determinou o sentido e a forma do discurso médico, mas como e por que ela faz parte de suas condições de emergência, de inserção e de funcionamento.

5 – A MUDANÇA E AS TRANSFORMAÇÕES

p. 190 (...) A arqueologia (...) parece tratar a história só para imobilizá-la. De um lado descrevendo suas formações discursivas, abandona as séries temporias que aí se podem manifestar; busca regras gerais que valem uniformementnte, e da mesma maneira, em todos os pontos do tempo: não impõe, a um desenvolvimento talvez lento e imperceptível, a figura coatora de uma sincronia.

p.191-193 * A

a) A arqueologia define as regras de formação de um conjunto de enunciados (...). A arqueologia não nega a possibilidade de enunciados novos em correlação com acontecimentos “exteriores”. Sua tarefa é mostrar em que condições pode haver tal correlação entre eles, e em que ela consiste precisamente (...).

b) Além disso, todas as regras de formação atribuídas pela arqueologia a uma positividade não têm a mesma generalidade: algumas são mais particulares e derivam das outras. (...) Não se deve acreditar, consequentemente, que um sistema de positividade seja um afigura sincrônica que só podemos perceber colocando entre parênteses o conjunto do processo diacrônico. Longe de ser indiferente à sucessão, a arqueologia demarca os vetores temporais de derivação.

p.193 O que [a arqueologia] suspende é o tema de que a sucessão é um absoluto (...). (...) É preciso, portanto, para constituir uma história arqueológica do discurso, livrarmo-nos de dois modelos que, por muito tempo sem dúvida, impuseram sua imagem: o modelo linear de ato da fala (e pelo menos uma parte da escrita) em que todos os acontecimentos se sucedem, com exceção do efeito de coincidência e de superposição; e o modelo do fluxo de consciência cujo presente escapa sempre a si mesmo na abertura do futuro e na retenção do passado.

p.194-200 * B

p.194 A arqueologia fala – bem mais à vontade do que a história das idéias – de cortes, falhas, aberturas, formas inteiramente novas de positividade e redistribuições súbitas.

p. 195 A arqueologia (...) toma por objeto de sua descrição o que habitualmente se considera obstáculo: ela não tem por projeto superar as diferenças, mas analisá-las, dizer em que exatamente consistem e diferenciá-las. Como se opera tal diferenciação? ê

p.195-196 * 1. A arqueologia, ao invés de considerar que o discurso é feito apenas de uma série de acontecimentos homogêneos (as formulações individuais), distingue, na própria densidade do discurso, diversos planos de acontecimentos possíveis (...).

p.196-197 * 2. (...) O desaparecimento de uma positividade e a emergência de uma outra implica diversos tipos de transformações. Indo das mais particulares às mais gerais, pode-se e deve-se descrever como se transformam os diferentes elementos de um sistema de formação (...).

p.197-198 * 3. Dizer que uma formação discursiva substitui outra não é dizer que todo um mundo de objetos, enunciações, conceitos, escolhas teóricas absolutamente novas, surge já armado e organizado em um texto que o situaria de uma vez por todas (...).

p.198-200 * 4. (...) Não se deve acreditar que a ruptura seja uma espécie de grande deriva geral a que estariam submetidas, ao mesmo tempo, todas as formações discursivas: a ruptura não é um tempo morto e indiferenciado que se intercalaria – não mais que um instante – entre duas fases manifestas; não é o lapso sem duração que separaria duas épocas e desdobraria, de um lado e de outro de uma falha, dois tempos heterogêneos (...).

(...) A contemporaneidade de várias transformações não significa sua exata coincidência cronológica; cada transformação pode ter seu índice particular de “viscosidade” temporal.

p.200 (...) Assim, a Revolução Francesa (...) funciona como um conjunto complexo, articulado, descritível, de transformações que deixaram intactas um certo número de positividades, fixaram, para outras, regras que ainda são as nossas e, igualmente, estabeleceram positividades que acabam de se desfazer ou se desfazem ainda sob nossos olhos.

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