ARISTÓTELES. Poética.

UESC

Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC

Departamento de Letras e Artes - DLA

Organização: Prof. Dr. Isaias Francisco de Carvalho

Fichamentos diplomáticos de Isaias Carvalho

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ARISTÓTELES. Arte poética.

ARISTÓTELES. Arte poética.

A - Considerações Gerais

1. Lígia Telles salienta a importância de COMPAGNON para o curso. Acrescenta, dele: de Aristóteles a Auerbach não houve descontinuidade no uso conceito de MIMESIS no pensametno ocidental. Auerbach ainda entende MIMESIS como Aristóteles o fazia.

2. Esta é a primeira sistematização (o primeiro tratado) sobre o que hoje chamamos de literatura (poesia) que se conhece. No Dicionário de Termos Literários, de Massaud Moisés (editora Cultrix), um grande número de palavras é explicado a partir dessa obra de Aristóteles.

3. O que hoje conhecemos como gêneros era chamado de espécies por Aristóteles (p. 37).

4. Aristóteles não propõe simplesmente a arte pela arte (a autonomização da estética): “(...) o poeta deve ser mais fabulador que versificador, porque ele é poeta pela imitação e porque imita ações.” (p. 79). Portanto, o conteúdo é muito relevante.

5. Coincidentemente (?), no capítulo III da Poética, Aristóteles classifica as espécies de poesia imitativa, como Platão o faz no Livro III da República. (?) Investigar mais.

6. Quanto mais mimese, mais literário, mais literariedade (formalistas russos)

7. Margites ou Louco enfatuado de si mesmo, poema satírico que Aristóteles atribui a Homero, perdeu-se. Aristóteles vê nele a origem da comédia, e na Ilíada e na Odisséia a origem da tragédia.

8. ANOTAÇÕES a partir da leitura de COSTA, Lígia Militz da. A Poética de Aristóteles: mimese e verossimilhança. São Paulo: Editora Ática, 2003. (Série Princípios) a. “[A mímesis, na civilização grega] nunca correspondeu, entretanto, a qualquer realismo grosseiro.” (p. 5) // “Distante das mais altas exigências pedagógicas e morais e limitada a representar, num terceiro nível, as formas originárias, a mimese foi depreciada por Platão.” (p. 6) // “[Aristóteles] refutou, contudo, o conceito platônico [de mimese], enaltecendo o valor da arte justamente pela autonomia do processo mimético face à verdade preestabelecida.[...] O critério do verossímil, que merecera a crítica de Platão por ser apenas ilusão da verdade, torna-se, com Aristóteles, o princípio que garante a autonomia da arte mimética.” (p. 6) // “[A Poética] circunscreve-se aos limites da tragédia e da epopéia, oferecendo apenas como promessa estudo posterior de outras espécies de ‘poesia’, como é o caso da comédia, citada no início do capítulo VI.” (p. 7) // “A Poética reconhece explicitamente como gêneros somente a tragédia, a epopéia e a comédia, ou seja, as espécies miméticas que implicam a transformação do caráter do modelo (homem comum) para melhor (tragédia e epopéia) ou para pior (comédia).” (p. 12) // “Homero será considerado por Aristóteles como o poeta supremo, no gênero austero ou sério, e o precursor tanto da tragédia quanto da comédia.” (p. 15) // “A teoria da tragédia é a base de toda a teoria da arte contida no texto aristotélico.” (p. 18) // “[A tragédia é definida por Aristóteles como] a representação de ações de homens de caráter elevado (objeto da imitação), expressa por uma linguagem ornamentada (meio), através do diálogo e do espetáculo cênico (modo), e visando à purificação das emoções (efeito catártico), à medida que suscita o temor e a piedade no espectador.” (p. 18) // CONSIDERAÇÕES ACERCA DA MÍMESE A PARTIR DA POÉTICA: “a poesia (arte literária) é mimese: imitação, representação (cap. I).” (p.47) // “mimese corresponde a um processo construível através de meios, objetos e modos (cap. I, II e III).” (p. 47) // “a mimese pode ser produzida através de dois modos: narrativo (próprio da epopéia) e dramático (próprio da tragédia).” (p. 48) // “a mímese se explica como uma tendência congênita no homem, ao qual apraz tanto produzi-la quanto contemplá-la; o prazer que a mimese determina envolve uma aprendizagem (conhecimento) e um reconhecimento (identificação com uma forma original) (cap. IV).” (p. 48) // “a tragédia se identifica com a mimese de qualidade superior, em contraponto com a mimese efetuada pela comédia (...)(cap. VI).” (p. 48) // CONSIDERAÇÕES SOBRE MITO & MIMESE: “na Poética, praticamente toda a mimese pode ser compreendida pelo estudo do mito trágico, porque, sendo a base da mimese, o mito com ela se identifica (cap. VII a XIV).” (p. 49) // “o mito é a representação de uma ação que compõe um todo uno (...).” (p.49) // “a mimese, que o mito opera, supõe seleção e ordenação dos elementos segundo a probabilidade e a necessidade, daí não corresponder à representação de acontecimentos reais ou históricos, mas de acontecimentos possíveis.” (p. 49) // “o encadeamento causal que estrutura a ação, na mimese, segundo o verossímil (provável) e o necessário (lógico), torna a poesia mais geral ou universal que a história, circunscrita a relatos de acontecimentos particulares.” (p. 49) // “é a capacidade de compor um mito que define um homem como poeta (artista)”. (p. 49) // “todas as partes que compõem o mito – peripécia, reconhecimento e catástrofe – subordinam-se aos princípios do verossímil e do necessário.” (p. 50) // “o próprio desenlace do mito trágico deve decorrer do arranjo das ações e, não, do deus ex machina.” (p. 50) // [Em contraste a Platão] “a mimese [em Aristóteles] reúne, assim, duas exigências: a reprodução reconhecível do modelo original e a sua elevação ética.” (p. 51) // [????] “um recurso da mimese trágica é o efeito de surpresa, o qual, mesmo inverossímil, pode parecer verossímil, porque é verossímil que aconteçam coisas inverossímeis.” (p. 50) // “a tragédia é mais verossímil do que a epopéia; esta admite com mais facilidade o uso do irracional.” (p. 52) // “o paralogismo é um recurso da mimese trágica que foi ensinado pelo supremo poeta épico: Homero; coube a ele ensinar como convencer, dizendo o que é falso a partir de uma estratégia verossímil; enquanto o silogismo é um recurso que leva à aceitação de uma conclusão verdadeira, o paralogismo leva à admissão de um raciocínio falso.” (p. 52) // “o verossímil é o critério que deve nortear a escolha dos argumentos para a composição mimética; um argumento impossível que convença é melhor do que um possível que não convença; o próprio irracional, utilizado com aparência razoável de racional, torna-se aceitável.” (p. 52) // CONCLUSÕES: “o conceito aristotélico de mimese não significa mera imitação ou reprodução da ‘realidade’.” (p. 53) // “a construção mimética é presidida por um critério fundamental: a verossimilhança [o possível, e não o verdadeiro]”. (p. 53) // REFERINDO-SE A COSTA LIMA: “O uso pragmático da linguagem atua diretamente sobre a realidade; a função estética só indiretamente estabelece uma relação como o real. Esta é, segundo [Costa Lima], a distinção entre a mimese e as outras formas de representação social.” (p. 61) // “Resgatada como um processo dinâmico de criação, a mimese opera uma transformação singular do já existente através de novas correlações. O princípio estruturador dessa nova ordem é o verossímil (interno), o qual permite que a engrenagem ficcional construa-se como um todo, com a unidade pensável de possibilidades referenciais.” (p. 70-71)

B - Termos basilares/vocabulário:

1. Espécies: o que hoje conhecemos como gêneros. (p. 37)

2. Mito = no contexto da Poética aristotélica, mito é sinônimo de fábula, intriga ou história, significando um conjunto elaborado de elementos selecionados e agenciados, segundo uma ordem verossímil, que se opõe à diversidade aleatória dos acontecimentos reais.” (COSTA, 2003, p. 73-74).

3. Mimesis = imitação; relação entre literatura e realidade; representação. (Aurélio): Mimese: 1. Ret. Figura que consiste no uso do discurso direto e principalmente na imitação do gesto, voz e palavras de outrem. 2. Liter. Imitação ou representação do real na arte literária, ou seja, a recriação da realidade.

4. Os cantos fálicos eram farsas mimadas, bastante indecentes, celebradas em cidades como Sicíone.Eram executados por cantores chamados falóforos, aos gritos de que sua cantoria não era para as virgens.

5. Representação/Representar: o mesmo que mimesis/imitar?. (p. ?) // “o conceito aristotélico de mimese não significa mera imitação ou reprodução da ‘realidade’” (COSTA, 2003, p. 53).

6. deus ex machina = em teatro greco-romano, ator representando um deus que vem por meio de mecanismos; evento que traz desenlace inesperado e feliz a uma situação grave

7. Poesia (poiésis): a arte em geral; a literatura em geral? (p. 37)

8. Paralogismo: s. m. Lóg. Falso raciocínio, não estabelecido de má-fé como no sofisma.

9. Silogismo: s. m. Lóg. Argumento que consiste em três proposições: a primeira, chamada premissa maior; a segunda, chamada premissa menor; e a terceira, conclusão. Admitida a coerência das premissas, a conclusão se infere da maior por intermédio da menor. [enquanto o silogismo é um recurso que leva à aceitação de uma conclusão verdadeira, o paralogismo leva à admissão de um raciocínio falso]

10. Epopéia: v. Épica: Grego epikós; épos, palavra narrativa, poema, recitação. P. 181 (Dicionário de Termos Literários, de Massaud Moisés): ainda que se venha a provar a existência de realizações épicas anteriores a Homero, é com os seus poemas (Odisséia e Ilíada, século IX a.C.) que principia a história dessa espécie de poesia. (...) Os Lusíadas (1572) constituem a mais alta realização épica dos tempos modernos. P.181// A poesia épica deve girar em torno de assunto ilustre, sublime, solene, especialmente vinculado a cometimentos bélicos; deve prender-se a acontecimentos históricos, ocorridos há muito tempo (...). p.184 / ler mais em Massaud Moisés.

11. Tragédia: (Dicionário de Termos Literários, de Massaud Moisés): Grego tragoidía, canto de bode (grupo de cantores vestidos de bode, sátiros, portanto), em honra a Baco. Para Aristóteles, a origem da tragédia seria do ditirambo. // Praticamente olvidada no curso da Idade Média, a tragédia voltou a ser apreciada e estudada com o Renascimento, graças à onda de Classicismo que o acompanhou. P.495 // A partir do século XIX, com a recusa da pureza dos gêneros e das regras clássicas, a tragédia quase desapareceu por completo, (...) mercê do surgimento do drama. P.496 // A tragédia clássica apresentava a seguinte estrutura: 1) prólogo, em forma de diálogo, 2) párodo, ou entrada do coro, 3) episódios, em número de três, separados pelos estásimos, ou intervenções do coro, 4) êxodo, ou desfecho. E conforme Aristóteles (...), seis partes a constituiriam: fábula, ou ação, personagens, elocução, pensamento, espetáculo e música. P.498 // A rigor, a tragédia saiu de circulação no século XIX; no entanto, algumas peças de Ibsen ou o moderno teatro do absurdo têm sido ocasionalmente rotulados como tal. P. 498 // ler mais em Massaud Moisés.

12. Comédia: (Dicionário de Termos Literários, de Massaud Moisés): Grego komodía. ler mais em Massaud Moisés.

13. Drama: (Dicionário de Termos Literários, de Massaud Moisés ): Grego drama, ação. // (...) como a ação se afigurava exclusiva do teatro, passou a conter um significado específico. Aristóteles, na Poética (...), distingue a imitação, ou mimese, “na forma narrativa” daquela em que as “pessoas agem e obram diretamente”, ou seja, em que se processa a imitação da ação. Ao segundo tipo confere o apelativo de drama. Portanto, em sentido amplo, a qualquer peça destinada a representar-se caberia análoga denominação. P.161 // ler mais em Massaud Moisés

14. Narrativa: ( Dicionário de Termos Literários, de Massaud Moisés): Em crítica literária, o termo às vezes é usado como sinônimo de história, ação, mas parece uma abusiva extensão semântica. Melhor será fixar o vocábulo “narrativa”para a denominação genérica, e reservar a palavra “narração” como designativo de recurso expressivo da prosa de ficção, lado a lado com a descrição, o diálogo, e a dissertação. P.356

15. A peripécia é a mudança da ação no sentido contrário ao que parecia indicado e sempre, como dissemos, em conformidade com o verossímil e o necessário.

16. Ditirambo (poesia ditirâmbica): (Dicionário de Termos Literários, de Massaud Moisés): Vinculado, pois, aos cultos dionisíacos e exaltando os prazeres da mesa, o ditirambo estaria, segundo Aristóteles (...), na raiz da tragédia. Inicialmente, ao canto se acrescentavam a dança e a música de flauta. Nos séculos VII e VI ªC., o poeta Ariosto, (...) emprestou-lhe a estrutura que se tornaria clássica: adotou a intervenção do coro e fixou-lhe o número em cinqüenta participantes; destacou o líder do coro (corifeu) e, tornando-o solista, implantou o germe do diálogo que teria colaborado, conforme se supõe, no processo criador das representações trágicas. P.157-8. [Canto ritual em homenagem a Dioniso (Baco)]

17. VEROSSIMILHANÇA: Unidade ou coerência dentro da obra: personagens e enredo plausíveis. // (Aurélio): ou verosimilhança: 1. Qualidade ou caráter de verossímil [ou verossimilhante: 1. Semelhante à verdade; que parece verdadeiro. 2. Provável.]; 2. Liter. Coerência interna da obra literária no tocante ao mundo imaginário das personagens e situações recriadas. [Verossimilhança X Verdade] “critério fundamental do conceito aristotélico de mimese, responsável pela distinção entre a obra do poeta e a do historiador. Representar o verossímil, na mimese, significa que o objeto da representação do poeta não o que realmente aconteceu, mas o que poderia acontecer, isto é, o possível.

18. Catarse: * (Dicionário de Termos Literários, de Massaud Moisés): A Catarse é uma das questões mais controvertidas e debatidas da história das idéias estéticas. Aristóteles colocou-a pela primeira vez, ao proceder à exegese da tragédia, afirmando que esta, “suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação desses sentimentos” (...). p.79 // As várias propostas em torno do vocábulo “catarse” podem ser resumidas em duas principais: ora se entende que a purgação constitui a experiência da piedade e terror que o espectador sofre perante a tragédia que contempla, de molde a “viver”a situação infausta do herói e aprender a distanciá-la de si; ora se julga que a visualização do tormento alheiro proporciona à platéia o alívio da próprias tensões, ao menos enquanto dura o espetáculo. P.79 // A noção de catarse, indispensável em toda discussão acerca do valor ético da Arte, assemelha-se à idéia de “sublimação” como a compreende a Psicanálise de Freud: na medida em que o impulso sexual, ou sua energia (libido), é canalizado para ou transformado em Arte, de maneira a tornar-se socialmente aceitável, o mecanismo da catarse equivaleria ao da sublimação. P.79-80 * (Aurélio): 1. Purgação, purificação, limpeza. 2. Méd. Evacuação, natural ou provocada, por qualquer via. 3. Psicol. Efeito salutar provocado pela conscientização de uma lembrança fortemente emocional e/ou traumatizante, até então reprimida. 4. Teat. O efeito moral e purificador da tragédia clássica, conceituado por Aristóteles (...), cujas situações dramáticas, de extrema intensidade e violência, trazem à tona os sentimentos de terror e piedade dos espectadores, proporcionando-lhes o alívio, ou purgação, desses sentimentos (...).

C – Trechos extraídos do texto

CAPÍTULO I Da poesia e da imitação segundo os meios, o objeto e o modo de imitação

Nosso propósito é abordar a produção poética em si mesma e em seus diversos gêneros, dizer qual a função de cada um deles, e como se deve construir a fábula visando a conquista do belo poético; qual o número e natureza de suas (da fábula) diversas partes, e também abordar os demais assuntos relativos a esta produção. Seguindo a ordem natural, começaremos pelos pontos mais importantes.

2. A epopéia e a poesia trágica, assim como a comédia, a poesia ditirâmbica, a maior parte da aulética e da citarística, consideradas em geral, todas se enquadram nas artes de imitação [artes miméticas].

3. Contudo há entre estes gêneros três diferenças: seus meios não são os mesmos, nem os objetos que imitam, nem a maneira de os imitar. 4. / 5. / 6. / 7. A epopéia serve-se da palavra simples e nua dos versos, quer mesclando metros diferentes, quer atendo-se a um só tipo, como tem feito até ao presente.

8. / 9. / 10. Sem estabelecer relação entre gênero de composição e metro empregado, não é possível chamar os autores de elegíacos, ou de épicos; para lhes atribuir o nome de poetas, neste caso temos de considerar não o assunto tratado, mas indistintamente o metro de que se servem.

11. Não se chama de poeta alguém que expôs em verso um assunto de medicina ou de física! Entretanto nada de comum existe entre Homero e Empédocles,(3) salvo a presença do verso. Mais acertado é chamar poeta ao primeiro e, ao segundo, fisiólogo. 12. / 13. / 14. Tais são as diferenças entre as artes que se propõem a imitação.

CAPÍTULO II Diferentes espécies de poesia segundo os objetos imitados

Como a imitação se aplica aos atos das personagens e estas não podem ser senão boas ou ruins (pois os caracteres dispõem-se quase nestas duas categorias apenas, diferindo só pela prática do vício ou da virtude), daí resulta que as personagens são representadas melhores, piores ou iguais a todos nós.

2. / 3. / 4. / 5. e também nas obras em prosa, nos versos não cantados. Por exemplo, Homero pinta o homem melhor do que é; Cleofonte(10), tal qual é; Hegémon de Tasso(11), o primeiro autor de paródias, e Nicócares(12), em sua Delíade, o pintam pior.

6. / 7. É também essa diferença o que distingue a tragédia da comédia: uma se propõe imitar os homens, representando-os piores; a outra os torna melhores do que são na realidade.

CAPÍTULO III Diferentes espécies de poesia segundo a maneira de imitar

Existe uma terceira diferença em relação à maneira de imitar cada um dos modelos.

2. / 3. A imitação é realizada segundo esses três aspectos, como dissemos no princípio, a saber: os meios, os objetos, a maneira.

4. Sófocles(15), por um lado, imita à maneira de Homero, pois ambos representam homens melhores; entretanto ele também imita à maneira de Aristófanes,(16) visto ambos apresentarem a imitação usando personagens que agem perante os espectadores.. Daí que alguns chamem a essas obras dramas, porque fazem aparecer e agir as próprias personagens. 5. / 6. / 7. É bastante o dito, sobre as diferenças da imitação, quanto a seu número e natureza.

Capítulo IV Origem da poesia. Seus diferentes gêneros.

Parece haver duas causas, e ambas devidas à nossa natureza, que deram origem à poesia.

2. A tendência para a imitação é instintiva no homem, desde a infância. Neste ponto distinguem-se os humanos de todos os outros seres vivos: por sua aptidão muito desenvolvida para a imitação. Pela imitação adquirimos nossos primeiros conhecimentos, e nela todos experimentamos prazer.

3. A prova é-nos visivelmente fornecida pelos fatos: objetos reais que não conseguimos olhar sem custo, contemplamo-los com satisfação em suas representações mais exatas. Tal é, por exemplo, o caso dos mais repugnantes animais e dos cadáveres.

4. A causa é que a aquisição de um conhecimento arrebata não só o filósofo, mas todos os seres

humanos, mesmo que não saboreiem tal satisfação durante muito tempo.

5. Os seres humanos sentem prazer em olhar para as imagens que reproduzem objetos. A contemplação delas os instrui, e os induz a discorrer sobre cada uma, ou a discernir nas imagens as pessoas deste ou daquele sujeito conhecido. / 6. Se acontece alguém não ter visto ainda o original, não é a imitação que produz o prazer, mas a perfeita execução, ou o colorido, ou alguma outra causa do mesmo gênero.

7. Como nos é natural a tendência à imitação, bem como o gosto da harmonia e do ritmo (pois é evidente que os metros são parte do ritmo), nas primeiras idades os homens mais aptos por natureza para estes exercícios foram aos poucos criando a poesia, por meio de ensaios improvisados.

8. O gênero poético se dividiu em diferentes espécies, consoante o caráter moral de cada sujeito imitador. (...).

9. / 10. Possuímos, feito por Homero, o Margites(20) e obras análogas deste autor, nas quais o metro iâmbico [ U — ] é o utilizado para tratar esta espécie de assuntos. Por tal razão, até hoje a comédia é chamada de iambo, visto os autores servirem-se deste metro para se insultarem uns aos outros (icmbize iu).

11. / 12. Do mesmo modo que Homero foi sobretudo cantor de assuntos sérios (ele é único, não só porque atingiu o belo, mas também porque suas imitações pertencem ao gênero dramático), foi também ele o primeiro a traçar as linhas mestras da comédia, distribuindo sob forma dramática tanto a censura como o ridículo. Com efeito, o Margites apresenta analogias com o gênero cômico, assim como a Ilíada e a Odisséia são do gênero trágico.

13. Quando surgiram a tragédia e a comédia, os poetas, em função de seus temperamentos individuais, voltaram-se para uma ou para outra destas formas; uns passaram do iambo à comédia, outros da epopéia à representação das tragédias, porque estes dois gêneros ultrapassavam os anteriores em importância e consideração.

14. / 15. / 16. / 17. Com referência ao número de atores: Ésquilo foi o primeiro que o elevou de um a dois, em detrimento do coro (22), o qual, em conseqüência, perdeu uma parte da sua importância; e criou-se o protagonista. Sófocles introduziu um terceiro ator, dando origem à cenografia. / 18. / 19. / 20. / 21. / 22. Mas sobre estas questões, basta o que já foi dito, pois seria enfadonho insistir em cada ponto.

CAPÍTULO V Da comédia. Comparação entre a tragédia e a epopéia

A comédia é, como já dissemos, imitação de maus costumes, mas não de todos os vícios; ela só imita aquela parte do ignominioso que é o ridículo.

2. O ridículo reside num defeito ou numa tara que não apresenta caráter doloroso ou corruptor. Tal é, por exemplo, o caso da máscara cômica feia e disforme, que não é causa de sofrimento.

3. / 4. / 5. (...) Assim, a comédia se originou na Sicília. / 6. / 7. Quanto à epopéia, por seu estilo corre a par com a tragédia na imitação dos assuntos sérios, mas sem empregar um só metro simples ou forma negativa. Nisto a epopéia difere da tragédia. / 8. E também nas dimensões. A tragédia empenha-se, na medida do possível, em não exceder o tempo de uma revolução solar, ou pouco mais. A epopéia não é tão limitada em sua duração; e esta é outra diferença. 9. / 10. Quanto às partes constitutivas, umas são comuns à epopéia e à tragédia, outras são próprias desta última. / 11. Por isso, quem numa tragédia souber discernir o bom e o mau, sabê-lo-á também na epopéia. Todos os caracteres que a epopéia apresenta encontram-se na tragédia também. / 12. Falaremos mais tarde da imitação por meio do verso hexâmetro e da comédia.

CAPÍTULO VI Da tragédia e de suas diferentes partes [VI a XXII–Tragédia]

Falemos da tragédia e, em função do que deixamos dito, formulemos a definição de sua essência própria. / 2. A tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão; deve ser composta num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas; na tragédia, a ação é apresentada, não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores. Suscitando a compaixão e o terror, a tragédia tem por efeito obter a purgação dessas emoções. 3. Entendo por "um estilo tornado agradável" o que reúne ritmo, harmonia e canto.

4. / 5. / 6. Por estes meios se obtém a imitação. Por elocução entendo a composição métrica, e por melopéia (26) (canto) a força expressiva musical, desde que bem ouvida por todos.

7. / 8. A imitação de uma ação é o mito (fábula); chamo fábula a combinação dos atos; chamo caráter (ou costumes) o que nos permite qualificar as personagens que agem; enfim, o pensamento é tudo o que nas palavras pronunciadas expõe o que quer que seja ou exprime uma sentença.

9.Daí resulta que a tragédia se compõe de seis partes, segundo as quais podemos classificá-la: a fábula, os caracteres, a elocução, o pensamento, o espetáculo apresentado e o canto (melopéia).

10. / 11. / Muitos são os poetas trágicos que se obrigaram a seguir estas formas; com efeito, toda peça comporta encenação, caracteres, fábula, diálogo, música e pensamento.

12. A parte mais importante é a da organização dos fatos, pois a tragédia é imitação, não de homens, mas de ações, da vida, da felicidade e da infelicidade (pois a infelicidade resulta também da atividade), sendo o fim que se pretende alcançar o resultado de uma certa maneira de agir, e não de uma forma de ser. Os caracteres permitem qualificar o homem, mas é da ação que depende sua infelicidade ou felicidade.

13. (...). Daí resulta serem os atos e a fábula a finalidade da tragédia; ora, a finalidade é, em tudo, o que mais importa. / 14. Sem ação não há tragédia, mas poderá haver tragédia sem os caracteres.

15. / 16. / 17. Além disso, na tragédia, o que mais influi nos ânimos são os elementos da fábula, que consistem nas peripécias e nos reconhecimentos. / 18. / 19. O elemento básico da tragédia é sua própria alma: a fábula; e só depois vem a pintura dos caracteres. / 20. / 21. A tragédia consiste, pois, na imitação de uma ação e é sobretudo por meio da ação que ela imita as personagens em movimento. / 22. Em terceiro lugar vem o pensamento, isto é, a arte de encontrar o modo de exprimir o conteúdo do assunto de maneira conveniente; na eloqüência, é essa a missão da retórica, e a tarefa dos políticos. / 23. Mas os antigos poetas apresentavam-nos personagens que se exprimiam como cidadãos de um Estado, ao passo que os de agora os fazem falar como retores.

24. O caráter é o que permite decidir após a reflexão: eis o motivo por que o caráter não aparece em absoluto nos discursos dos personagens, enquanto estes não revelam a decisão adotada ou rejeitada. / 25. Com relação ao pensamento, consiste em provar que uma coisa existe ou não existe ou em fazer uma declaração de ordem geral.

26. Temos, em quarto lugar, a elocução. Como dissemos acima, a elocução consiste na escolha dos termos, os quais possuem o mesmo poder de expressão, tanto em prosa como em verso.

27. A quinta parte compreende o canto: é o principal condimento (do espetáculo).

28. Sem dúvida a encenação tem efeito sobre os ânimos, mas ela em si não pertence à arte da

representação, e nada tem a ver com a poesia. A tragédia existe por si, independentemente da

representação e dos atores. Com relação ao valor atribuído à encenação vista em separado, a arte do cenógrafo tem mais importância que a do poeta.

CAPÍTULO VII Da extensão da ação

Após estas definições, diremos agora qual deve ser a tessitura dos fatos, já que este ponto é a parte primeira e capital da tragédia.

2. Assentamos ser a tragédia a imitação de uma ação completa formando um todo que possui certa extensão, pois um todo pode existir sem ser dotado de extensão.

3. Todo é o que tem princípio, meio e fim. 4. / 5. / 6. O meio é o que vem depois de uma coisa e é seguido de outra. 7. Portanto, para que as fábulas sejam bem compostas, é preciso que não comecem nem acabem ao acaso, mas que sejam estabelecidas segundo as condições indicadas.

8. Além disso, o belo, em um ser vivente ou num objeto composto de partes, deve não só apresentar ordem em suas partes como também comportar certas dimensões. Com efeito, o belo tem por condições uma certa grandeza e a ordem. 9. / 10. Daí se infere que o corpo humano, como o dos animais, para ser julgado belo, deve apresentar certa grandeza que torne possível abarcá-lo com o olhar; do mesmo modo as fábulas devem apresentar uma extensão tal que a memória possa também facilmente retê-las.

11. / 12. O limite, com relação à própria natureza do assunto, é o seguinte: quanto mais abrangente for uma fábula, tanto mais agradável será, desde que não perca em clareza. Para estabelecer uma regra geral, eis o que podemos dizer: a peça extensa o suficiente é aquela que, no decorrer dos acontecimentos produzidos de acordo com a verossimilhança e a necessidade, torne em infortúnio a felicidade da personagem principal ou inversamente a faça transitar do infortúnio para a felicidade.

CAPÍTULO VIII Unidade de ação

O que dá unidade à fábula não é, como pensam alguns, apenas a presença de uma personagem principal; no decurso de uma existência produzem-se em quantidade infinita muitos acontecimentos, que não constituem uma unidade. Também muitas ações, pelo fato de serem realizadas por um só agente, não criam a unidade. / 2. / 3. Mas Homero, que nisto como em tudo é o que mais se salienta, parece ter enxergado bem este ponto, quer por efeito da arte, quer por engenho natural, pois, ao compor a Odisséia, não deu acolhida nela a todos os acontecimentos da vida de Ulisses, como, por exemplo, a ferida que recebeu no Parnaso ou a loucura que simulou no momento da reunião do exército(29); não era necessário, nem sequer verossímil que, pelo fato de um evento ter ocorrido, o outro houvesse de ocorrer. Em torno de uma ação única, como dissemos, Homero agrupou os elementos da Odisséia e fez outro tanto com a Ilíada.

4. Importa pois que, como nas demais artes miméticas, a unidade da imitação resulte da unidade do objeto. Pelo que, na fábula, que é imitação de uma ação, convém que a imitação seja una e total e que as partes estejam de tal modo entrosadas que baste a supressão ou o deslocamento de uma só, para que o conjunto fique modificado ou confundido, pois os fatos que livremente podemos ajuntar ou não, sem que o assunto fique sensivelmente modificado, não constituem parte integrante do todo.

CAPÍTULO IX

Pelo que atrás fica dito, é evidente que não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança ou a necessidade.

2. O historiador e o poeta não se distinguem um do outro, pelo fato de o primeiro escrever em prosa e o segundo em verso (pois, se a obra de Heródoto (30) fora composta em verso, nem por isso deixaria de ser obra de história, figurando ou não o metro nela). Diferem entre si, porque um escreveu o que aconteceu e o outro o que poderia ter acontecido. 3. Por tal motivo a poesia é mais filosófica e de caráter mais elevado que a história, porque a poesia permanece no universal e a história estuda apenas o particular.

4. O universal é o que tal categoria de homens diz ou faz em determinadas circunstâncias, segundo o verossímil ou o necessário. (...). 5. Quanto à comédia, os autores, depois de terem composto a fábula, apresentando nela atos verossímeis, atribuem-nos a personagens, dando-lhes nomes fantasiados, e não procedem como os poetas iâmbicos que se referem a personalidades existentes.

6. Na tragédia, os poetas podem recorrer a nomes de personagens que existiram, e por trabalharem com o possível, inspiram confiança. O que não aconteceu, não acreditamos imediatamente que seja possível; quanto aos fatos representados, não discutimos a possibilidade dos mesmos, pois, se tivessem sido impossíveis, não se teriam produzido. 7. Não obstante, nas tragédias um ou dois dos nomes são de personagens conhecidas, e os demais são forjados; em certas peças todos são fictícios, como no Anteu de Agatão(32), no qual fatos e personagens são inventados, e apesar disso não deixa de agradar.

8. Portanto não há obrigação de seguir à risca as fábulas tradicionais, donde foram extraídas as nossas tragédias. (...) 9. De acordo com isto, é manifesto que a missão do poeta consiste mais em fabricar fábulas do que fazer versos, visto que ele é poeta pela imitação, e porque imita as ações.

10. Embora lhe aconteça apresentar fatos passados, nem por isso deixa de ser poeta, porque os fatos passados podem ter sido forjados pelo poeta, aparecendo como verossímeis ou possíveis. 11. / 12. / 13. / 14. / 15.

CAPÍTULO X

Das fábulas, umas são simples, outras complexas, por serem assim as ações que as fábulas imitam.

2. Chamo ação simples aquela cujo desenvolvimento, conforme definimos, permanece uno e contínuo e na qual a mudança não resulta nem de peripécia, nem de reconhecimento; 3. E ação complexa aquela onde a mudança de fortuna resulta de reconhecimento ou de peripécia ou de ambos os meios. 4. (...).

CAPÍTULO XI Elementos da ação complexa: peripécias, reconhecimentos, acontecimento patético ou catástrofe

A peripécia é a mudança da ação no sentido contrário ao que parecia indicado e sempre, como dissemos, em conformidade com o verossímil e o necessário.

2. Assim, no Édipo(33), o mensageiro que chega julga que vai dar gosto a Édipo e libertá-lo de sua inquietação relativamente a sua mãe, mas produz efeito contrário quando se dá a conhecer.

3. / 4. O reconhecimento, como o nome indica, faz passar da ignorância ao conhecimento, mudando o ódio em amizade ou inversamente nas pessoas votadas à infelicidade ou ao infortúnio.

5. O mais belo dos reconhecimentos é o que sobrevém no decurso de uma peripécia,

6. como acontece no Édipo. Há outras espécies de reconhecimento. O que acabamos de dizer ocorre também com objetos inanimados, sejam quais forem; é matéria de reconhecimento ficar sabendo que uma pessoa fez ou não fez determinada coisa. 7. Mas o reconhecimento que melhor corresponde à fábula é o que decorre da ação, conforme dissemos. Com efeito, a união de um reconhecimento e de uma peripécia excitará compaixão ou terror; ora, precisamente nos capazes de os excitarem consiste a imitação que é objeto da tragédia. Além do que, infortúnio e felicidade resultam dos atos. 8. / 9. A este respeito, duas partes constituem a fábula: peripécia e reconhecimento; a terceira é o acontecimento patético (catástrofe). Tratamos da peripécia e do reconhecimento; 10. o patético é devido a uma ação que provoca a morte ou sofrimento, como a das mortes em cena, das dores agudas, dos ferimentos e outros casos análogos.

CAPÍTULO XII Divisões da tragédia

Tratamos anteriormente dos elementos da tragédia, e de quais se devem usar como suas formas

essenciais. Quanto às partes distintas em que se divide, são elas: prólogo, epílogo, êxodo, canto coral; / 2. compreendendo este último o párodo e o estásimo; / 3. estas partes são comuns a todas as tragédias; outras são peculiares a algumas peças, a saber, os cantos da cena e os cantos fúnebres.

4. O prólogo é uma parte da tragédia que a si mesma se basta, e que precede o párodo (entrada do coro). / 5. O episódio é uma parte completa da tragédia colocada entre cantos corais completos;

6. o êxodo (ou saída) é uma parte completa da tragédia, após a qual já não há canto coral.

7. No elemento musical, o párodo é a primeira intervenção completa do coro;

8. O estásimo é o canto coral donde são excluídos os versos anapésticos (UU—) e os versos trocaicos (—U); / 9. O commoz (37) é um canto fúnebre comum aos componentes do coro e aos atores em cena. / (...)

CAPÍTULO XIII

Das qualidades da fábula em relação às personagens. Do desenlace

Que fim devem ter os poetas em mira ao organizarem suas fábulas, que obstáculos deverão evitar, que meios devem ser utilizados para que a tragédia surta seu efeito máximo, é o que nos resta expor, depois das explicações precedentes.

2. A mais bela tragédia é aquela cuja composição deve ser, não simples, mas complexa; aquela cujos fatos, por ela imitados, são capazes de excitar o temor e a compaixão (pois é essa a característica deste gênero de imitação). Em primeiro lugar, é óbvio não ser conveniente mostrar pessoas de bem passar da felicidade ao infortúnio (pois tal figura produz, não temor e compaixão, mas uma impressão desagradável);

3. Nem convém representar homens maus passando do crime à prosperidade (de todos os resultados, este é o mais oposto ao trágico, pois, faltando-lhe todos os requisitos para tal efeito, não inspira nenhum dos sentimentos naturais ao homem – nem compaixão, nem temor);

4. / 5. Resta, entre estas situações extremas, a posição intermediária: a do homem que, mesmo não se distinguindo por sua superioridade e justiça, não é mau nem perverso, mas cai no infortúnio em conseqüência de algum erro que cometeu; neste caso coloca-se também o homem no apogeu da fama e da prosperidade, como Édipo ou Tiestes ou outros membros destacados de famílias ilustres.

6. Para que uma fábula seja bela, é portanto necessário que ela se proponha um fim único e não duplo, como alguns pretendem; ela deve oferecer a mudança, não da infelicidade para a felicidade, mas, pelo contrário, da felicidade para o infortúnio, e isto não em conseqüência da perversidade da personagem, mas por causa de algum erro grave, como indicamos, visto a personagem ser antes melhor que pior.

7. / 8. / 9. / Por isso, erram os críticos de Eurípides(41), quando o censuram por assim proceder em suas tragédias, que na maioria das vezes terminam em desenlace infeliz. Como já dissemos, tal concepção é justa. / 10. A melhor prova disto é a seguinte: em cena e nos concursos, as peças deste gênero são as mais trágicas, quando bem conduzidas; e Eurípides, embora falhe de vez em quando contra a economia da tragédia, nem por isso deixa de nos parecer o mais trágico dos poetas.

11. O segundo modo de composição, que alguns elevam à categoria de primeiro, consiste numa dupla intriga, como na Odisséia, onde os desenlaces são opostos: há um para os bons, outro para os maus. / 12. Esta última categoria é devida à pobreza de espírito dos espectadores, pois os poetas limitam-se a seguir o gosto do público, propiciando o que ele prefere. 13. Não é este o prazer que se espera da tragédia; ele é mais próprio da comédia, pois nesta as pessoas que são inimigas demais na fábula, como Orestes e Egisto(42), separam-se como amigos no desenlace, e nenhum recebe do outro o golpe mortal.

CAPÍTULO XIV Dos diversos modos de produzir o terror e a compaixão

O terror e a compaixão podem nascer do espetáculo cênico, mas podem igualmente derivar do arranjo dos fatos, o que é preferível e mostra maior habilidade no poeta.

2. Independentemente do espetáculo oferecido aos olhos, a fábula deve ser composta de tal maneira que o público, ao ouvir os fatos que vão passando, sinta arrepios ou compaixão, como sente quem ouve a fábula do Édipo.

3. / 4. / 5. / 6. Examinemos, pois, entre os fatos, aqueles que aparentam a nós serem capazes de assustar ou de inspirar dó. Necessariamente ações desta espécie devem produzir-se entre amigos ou inimigos, ou indiferentes. / 7. Se um inimigo mata outro, quer execute o ato ou o prepare, não há aí nada que mereça compaixão, salvo o fato considerado em si mesmo; / 8. o mesmo se diga de pessoas entre si estranhas. / 9. Mas, quando os acontecimentos se produzem entre pessoas unidas por afeição, por exemplo, quando um irmão mata o irmão, ou um filho o pai, ou a mãe o filho, ou um filho a mãe, ou está prestes a cometer esse crime ou outro idêntico, casos como estes são os que devem ser discutidos.

10. / 11. / 12. Há casos em que a ação decorre, como nos poetas antigos, com personagens que sabem o que estão fazendo, como a Medéia de Eurípedes, quando mata os próprios filhos;

13. Em outros casos, a personagem executa o ato sem saber que comete um crime, mas só mais tarde toma conhecimento do seu laço de parentesco com a vítima, (...) / 14. Existe um terceiro caso: o que se prepara para cometer um ato irreparável, mas age por ignorância, e reconhece o erro antes de agir. Além destes, não há outros casos possíveis; / 15. / 16. / 17. O segundo caso é o do ato executado. / 18. É preferível que a personagem atue em estado de ignorância e que seja elucidada só depois de praticado o ato; este perde o caráter repugnante e o reconhecimento produz um efeito de surpresa. / 19. (...)

CAPÍTULO XV Dos caracteres: devem ser bons, conformes, semelhantes, coerentes consigo mesmos

No que diz respeito aos caracteres, quatro são os pontos que devemos visar.

2. O primeiro é que devem ser de boa qualidade.

3. Esta bondade é possível em qualquer tipo de pessoas. Mesmo a mulher, do mesmo modo que o escravo, pode possuir boas qualidades, embora a mulher seja um ente relativamente inferior e o escravo um ser totalmente vil. [visão da mulher!]

4. O segundo é a conformidade; sem dúvida existem caracteres viris, entretanto a coragem desta espécie de caracteres não convém à natureza feminina.

5. O terceiro ponto é a semelhança, inteiramente distinta da bondade e da conformidade, tais como foram explicadas. 6. O quarto ponto consiste na coerência consigo mesmo, mas se a personagem que se pretende imitar é por si incoerente, convém que permaneça incoerente coerentemente.

7. / 9. / 10. Tanto na representação dos caracteres como no entrosamento dos fatos, é necessário sempre ater-se à necessidade e à verossimilhança, de modo que a personagem, em suas palavras e ações, esteja em conformidade com o necessário e verossímil, e que ocorra o mesmo na sucessão dos acontecimentos. / 11. Portanto é manifesto que o desenlace das fábulas deve sair da própria fábula, e não como na Medéia(50), provir de um artifício cênico (deus ex machina) ou como na Ilíada, a propósito do desembarque das tropas.

12. / 13. O irracional também não deve entrar no desenvolvimento dos fatos, a não ser fora da ação, como acontece no Édipo de Sófocles. 14. Sendo a tragédia a imitação de homens melhores que nós, convém proceder como os bons pintores de retratos, os quais, querendo reproduzir o aspecto próprio dos modelos, embora mantendo semelhança, os pintam mais belos. (...) / 15. (...)

CAPÍTULO XVI Das quatro espécies de reconhecimento

Dissemos acima o que vem a ser o reconhecimento. Das espécies de reconhecimento, a primeira, a mais desprovida de habilidade e a mais usada à falta de melhor, é o reconhecimento por meio de sinais exteriores. / 2. / 3. / 4. Há duas maneiras, uma melhor e outra pior, de utilizar estes sinais; por exemplo, a cicatriz de Ulisses tornou possível que fosse reconhecido pela ama de uma forma, e de outra pelos porqueiros.

5. / 6. A segunda espécie é a devida à inventiva do poeta, e por tal motivo não é artística; assim, Orestes, na Ifigênia, faz-se reconhecer declarando ser Orestes, e Ifigênia, graças à carta; mas Orestes declara aquilo que o poeta, e não a fábula, quer que ele declare. / 7. (...)

8. A terceira espécie consiste na lembrança; (...) /9. Em quarto lugar, há o reconhecimento proveniente de um silogismo, (...) / 10. O reconhecimento pode igualmente basear-se num paralogismo por parte dos espectadores, como se vê na peça Ulisses, falso mensageiro; a personagem acha-se capaz de reconhecer o arco, que na realidade não vira; a afirmação de que poderá reconhecer o arco é a base do paralogismo dos espectadores.

11. De todos estes meios de reconhecimento, o melhor é o que deriva dos próprios acontecimentos, pois o efeito de surpresa é então causado de maneira racional, por exemplo, no Édipo de Sófocles e na Ifigênia; pois é verossímil que Ifigênia quisesse entregar uma carta. Estas espécies de reconhecimento são as únicas que dispensam sinais imaginados e colares. 12. Em segundo lugar vêm todos os que estribam num raciocínio.

CAPÍTULO XVIIConselhos aos poetas sobre a composição das tragédias

Quando o poeta organiza as fábulas e completa sua obra compondo a elocução das personagens, deve, na medida do possível, proceder como se ela decorresse diante de seus olhos, pois, vendo as coisas plenamente iluminadas, como se estivesse presente, encontrará o que convém, e não lhe escapará nenhum pormenor contrário ao efeito que pretende produzir. 2. / 3. Na medida do possível, é importante igualmente completar o efeito do que se diz pelas atitudes das personagens. Em virtude da nossa natureza comum, são mais ouvidos os poetas que vivem as mesmas paixões de suas personagens; (...) / 4. / 5. Quanto aos assuntos, quer tenham sido já tratados por outros, quer o poeta os invente, convém que ele primeiro faça dos mesmos uma idéia global, e que em seguida distinga os episódios e os desenvolva. 6. / 7. Após isto, e uma vez atribuídos nomes às personagens, 8. Importa tratar os episódios, tendo o cuidado de bem os entrosar no assunto, como, no caso de Orestes, a crise de loucura, que provocou sua prisão, e o plano de purificá-lo, que causou sua salvação.

9. Nos poemas dramáticos os episódios são breves, mas baseando-se neles, a epopéia assume proporções maiores.

10. De fato, o assunto da Odisséia é de curtas dimensões. Um homem afastado de sua pátria pelo espaço de longos anos e vigiado de perto por Poseidon acaba por se encontrar sozinho; sucede, além disso, que em sua casa os bens vão sendo consumidos por pretendentes que ainda por cima armam ciladas ao filho deste herói; depois de acossado por muitas tempestades, ele regressa ao lar, dá-se a conhecer a algumas pessoas, ataca e mata os adversários e assim consegue salvar-se. Eis o essencial do assunto. Tudo o mais são episódios.

CAPÍTULO XVIII Nó, desenlace; tragédia e epopéia; o Coro

Em todas as tragédias há o nó e o desenlace. O nó consiste muitas vezes em fatos alheios ao assunto e em alguns que lhe são inerentes; o que vem a seguir é o desenlace.

2. Dou o nome de nó à parte da tragédia que vai desde o início até o ponto a partir do qual se produz a mudança para uma sorte ditosa ou desditosa; e chamo desenlace a parte que vai desde o princípio desta mudança até o final da peça. 3. (...) / 4. Há quatro espécies de tragédias, correspondentes ao número dos quatro elementos.

5. Uma complexa, constituída inteiramente pela peripécia e o reconhecimento...

6. A outra, a peça patética, do tipo de Ajax(58) e de Íxion(59);

7. a tragédia de caracteres, como Ftiótidas(60) e Peleu(61);

8. A quarta... como as Fórcidas e Prometeu e todas as que se passam no Hades.

9. (...) / 10. / 11. / 12. Importa não esquecer o que muitas vezes tenho dito: não compor uma tragédia como se compõe uma obra épica; entendo por épica a que enfeixa muitas fábulas, por exemplo, como se alguém quisesse incluir numa tragédia todo o assunto da Ilíada.

13. / 14. / 15. Mas nas peripécias e nas ações simples, os poetas alcançam maravilhosamente o fim que se propõe alcançar, a saber, a emoção trágica e os sentimentos de humanidade.

16. Assim acontece quando um homem hábil mas perverso é enganado como Sísifo, ou quando um homem corajoso mas injusto é derrotado. 17. Isto é verossímil, explica-nos Agatão, pois é verossímil que muitos acontecimentos se produzam, mesmo contra toda verossimilhança.

18. O coro deve ser considerado como um dos atores; deve constituir parte do todo e ser associado à ação, não como em Eurípedes, mas à maneira de Sófocles.

19. Na maioria dos poetas, os cantos corais referem-se tanto à tragédia, onde se encontram, como a qualquer outro gênero; por isso constituem uma espécie de interlúdio, cuja origem remonta a Agatão. Ora, existirá diferença entre cantar interlúdios e transferir de uma peça para outra um trecho ou um episódio completo?

CAPÍTULO XIX Do pensamento e da elocução

Depois de termos falado sobre os outros elementos essenciais da tragédia, resta-nos tratar da elocução e do pensamento. 2. O que diz respeito ao pensamento tem seu lugar nos Tratados sobre retórica, pois este gênero de investigações é seu objeto próprio. 3. Tudo que se exprime pela linguagem é domínio do pensamento. 4. Disso fazem parte a demonstração, a refutação, e também a maneira de mover as paixões, tais como a compaixão e o temor, a cólera e as outras.

5. É evidente que devemos empregar estas mesmas formas, a propósito dos fatos, sempre que for necessário apresentá-los comoventes, temíveis, importantes ou verossímeis.

6. A diferença consiste no fato de certos efeitos deverem ser produzidos sem o recurso do aparato cênico, e outros deverem ser preparados por quem fala e produzidos conforme suas palavras. Pois qual seria a parte daqueles que têm à sua disposição a linguagem, se o prazer fosse experimentado sem a intervenção do discurso?

7. (...) / 8. / 9. (...)

CAPÍTULO XX Da elocução e de suas partes

Eis os elementos essenciais da elocução: letra, sílaba, conjunção, nome, verbo, artigo, flexão, expressão.

2. A letra é um som indivisível, embora não completo, mas de seu emprego numa combinação resulta naturalmente um som compreensível, pois os animais também fazem ouvir sons indivisíveis, mas a esses não dou o nome de letras. 3. (...) 4. (...) / 5. A sílaba é um som sem significação, composto de uma muda e de uma letra provida de som, (...). / 6. / 7. / 8. O nome é um som composto, significativo, sem indicação de tempo, e nenhuma de suas partes faz sentido por si mesma, pois, nos nomes formados de dois elementos, não empregamos cada elemento com um sentido próprio; por exemplo, em Teodoro, o elemento doro não apresenta significado. 9. O verbo é um som composto, significativo, que indica o tempo (...)

10. A flexão é (...) 11. A locução (ou expressão) é um conjunto de sons significativos, algumas partes dos quais têm significação por si mesma, 12. (...) 13. (...)

CAPÍTULO XXI Das formas dos nomes; das figuras

Eis as espécies de nomes: primeiramente o nome simples. Chamo simples o nome que não é composto de elementos significativos, por exemplo "terra"; 2. nome duplo, é o composto ora de um elemento significativo e de outro vazio de sentido, ora de elementos todos significativos. 3. O nome pode ser formado de três, de quatro, e até mesmo de vários outros nomes, como muitos usados entre os marselheses, por exemplo ermocaicoxanqoz.

4. Todo nome é termo próprio ou termo dialetal, ou uma metáfora, ou um vocábulo ornamental, ou a palavra forjada, alongada, abreviada, modificada.

5. / 6. / 7. A metáfora é a transposição do nome de uma coisa para outra, transposição do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou de uma espécie para outra, por analogia. 8. Quando digo do gênero para a espécie, é, por exemplo, "minha nau aqui se deteve", pois lançar ferro é uma maneira de "deter-se";

9. Da espécie ao gênero: "certamente Ulisses levou a feito milhares e milhares de belas ações", porque "milhares e milhares" está por "muitas", e a expressão é aqui empregada em lugar de "muitas";

10. Da espécie para a espécie: "tendo-lhe esgotado a vida com o bronze" e "de cinco fontes cortando com o duro bronze"; aqui, "esgotar" equivale a "cortar" e "cortar" equivale a "esgotar"; são duas maneiras de tirar.

11. Digo haver analogia quando o segundo termo está para o primeiro, na proporção em que o quarto está para o terceiro, pois, neste caso, empregar-se-á o quarto em vez do segundo e o segundo em lugar do quarto.

12. Às vezes também se acrescenta o termo ao qual se refere a palavra substituída pela metáfora. Se disser que a taça é para Dionísio assim como o escudo é para Ares, chamar-se–á taça o escudo de Dionísio e ao escudo, a taça de Ares.

13. O que a velhice é para a vida, a tarde é para o dia. Diremos pois que a tarde é a velhice do dia, e a velhice é a tarde da vida, ou, com Empédocles, o ocaso da vida. Em alguns casos de analogia não existe o termo correspondente ao primeiro;

14. porém mesmo assim nada impede que se empregue a metáfora. O ato de "lançar a semente à terra" chama-se "semear"; mas não existe termo próprio para designar o ato de o sol deixar cair sobre nós sua luz; contudo existe a mesma relação entre este ato e a luz, que entre semear e a semente; pelo que se diz: "semeando uma luz divina".

15. Há outra maneira de empregar este gênero de metáfora, dando a uma coisa um nome que pertence a outra e negando uma das propriedades desta, como se, por exemplo, se denominasse o escudo, não a taça de Ares, mas a taça sem vinho. 16. O nome forjado é o que não foi empregado neste sentido por ninguém, mas que o poeta, por sua própria autoridade, atribui a uma coisa. Parece haver algumas palavras deste gênero, tais como "rebentos" para designar "cornos" e arhthra – "o que dirige súplicas" –por sacerdote. 17. (Desapareceu do texto original.) 18. / 19. / 20. / 21. / 22. / 23. / 24. / 25. / 26.

CAPÍTULO XXII Das qualidades da elocução

A qualidade principal da elocução poética consiste na clareza, mas sem trivialidades.

2. Obtém-se a clareza máxima pelo emprego das palavras da linguagem corrente, mas à custa da elevação. (...)

3. A elocução mantém-se nobre e evita a vulgaridade, usando vocábulos peregrinos (chamo peregrinos os termos dialetais), a metáfora, os alongamentos, em suma tudo o que se afasta da linguagem corrente.

4. (...) 5. / 6. / 8. / 9. / 10. / 11. De fato, servir-se com exagero de metáforas, de termos dialetais, de formas análogas, é o mesmo que provocar o riso de propósito. 12. / 13. / 15. / 16. / 17. / 18. / 19. / 20. Deve bastar quanto dissemos sobre a tragédia e imitação por meio da arte dramática.

CAPÍTULO XXIII Da unidade de ação na composição épica

Na imitação em verso pelo gênero narrativo, é necessário que as fábulas sejam compostas num espírito dramático, como as tragédias, ou seja, que encerrem uma só ação, inteira e completa, com princípio, meio e fim, para que, assemelhando-se a um organismo vivente, causem o prazer que lhes é próprio. Isto é óbvio.

2. A combinação dos elementos não se deve operar como nas histórias, nas quais é obrigatório mostrar, não uma ação única, referindo todos os acontecimentos que nesse tempo aconteceram a um ou mais homens, e cada um dos quais só está em relação fortuita com os restantes.

3. Assim como foram travados simultaneamente o combate naval de Salamina e, na Sicília, a batalha dos cartagineses (em Himera), sem que nenhuma destas ações tendesse para o mesmo fim; assim nos acontecimentos consecutivos, um fato sucede a outro, sem que entre eles haja comunidade de fim.(64)

4. É este o processo adotado pela maioria dos poetas.

5. Por este motivo, como dissemos, Homero, comparado com os demais poetas, nos parece admirável, pois evitou contar por inteiro a guerra de Tróia, se bem que ela tenha começo e fim. Semelhante argumento correria o risco de ser demasiado vasto e difícil de abarcar num relance; ou então, se a tivesse

reduzido a uma extensão razoável, ela teria sido demasiado complicada por tão grande variedade de

incidentes. Limitou-se a tratar de uma parte da guerra e inseriu muitos outros fatos por meio de

episódios, como por exemplo o catálogo das naus e outros trechos que de espaço a espaço dispõe no poema.

6. Os outros poetas, pelo contrário, tomam um só herói em um único período, mas sobrecarregam esta única ação de muitas partes, como faz, por exemplo, o autor dos Cantos Cíprios e da Pequena Ilíada.

7. Por esta razão, enquanto de cada um dos poemas da Ilíada e da Odisséia não há possibilidade de extrair senão um ou dois argumentos da tragédia, grande número de argumentos se pode tirar dos Cantos Cíprios e oito, pelo menos, da Pequena Ilíada, a saber: O Juízo das armas, Filocteto, Neoptólemo,

Eurípilo, O Mendigo, Lacedemônicas, Saque de Tróia, Partida das naus, Sínon e As troianas.(65)

CAPÍTULO XXIV Das partes da epopéia; méritos de Homero

A epopéia deve apresentar ainda as mesmas espécies que a tragédia: deve ser simples ou complexa, ou de caráter, ou patética.

2. Os elementos essenciais são os mesmo, salvo o canto e a encenação; também são necessários os reconhecimentos, as peripécias e os acontecimentos patéticos. Deve, além disso, apresentar pensamentos e beleza da linguagem.

3. Todos estes méritos, o primeiro que os teve disponíveis e os empregou de modo conveniente foi Homero. Cada um dos dois poemas é composto de tal maneira que a Ilíada é simples e patética, e a Odisséia oferece uma obra complexa (onde abundam os reconhecimentos), e um estudo dos caracteres. Além disso, em estilo e pensamento, seu autor supera os demais poetas.

4. Mas a epopéia é diferente da tragédia em sua constituição pelo emprego e dimensões do metro.

5. Quanto à extensão, indicamos o limite exato: é preciso que o seu conjunto possa ser abarcado do princípio ao fim. Isso aconteceria, se as composições épicas fossem menos longas que as dos antigos e se estivessem em relação com o total das tragédias representadas numa só audição.

6. A epopéia goza de vantagem peculiar no concernente a sua extensão: enquanto na tragédia não é possível imitar, no mesmo momento, as diversas partes simultâneas de uma ação, exceto a que está sendo representada em cena pelos atores; na epopéia, que se apresenta em forma de narrativa, é possível mostrar em conjunto vários acontecimentos simultâneos, os quais, se estiverem bem relacionados ao tema central, o tornam mais grandioso.

7. Daí resultam várias vantagens, como engrandecer a obra, permitir aos ouvintes transportarem-se a diversos lugares, introduzir variedade por meio de episódios diversos; pois a uniformidade não tarda em gerar a saciedade, causa do fracasso das tragédias.

8. A experiência provou que a medida mais conveniente à epopéia é o metro heróico. Com efeito, se, para fazer uma imitação em forma narrativa, se empregasse metro diferente, ou variado, saltaria aos olhos a inconveniência,

9. Visto ser o metro heróico , de todos o que possui maior gravidade e amplidão, sendo por isso o mais apto a acolher glosas e metáforas, e também neste particular a imitação pela narrativa é superior às outras.

10. O iambo e o tetrâmetro são metros de movimento, feitos um para a dança e o outro para a ação.

11. O resultado seria de todo extravagante, se se combinassem estes metros, como fez Querémon.

12. Por este motivo, jamais alguém escreveu um poema extenso que não fosse em verso heróico; e como dissemos, a própria natureza do assunto nos ensina a escolher o metro conveniente.

CAPÍTULO XXV Como se deve apresentar o que é falso

Sem dúvida, Homero é por muitas razões digno de elogio; e a principal delas é o fato dele ser, entre os poetas, o único que faz as coisas como elas devem ser feitas.

2. O poeta deve dialogar com o leitor o menos possível, pois não é procedendo assim que ele é imitador. Os poetas que não Homero, pelo contrário, ao longo do poema procedem como atores em cena, imitam pouco e raramente; ao passo que Homero, após curto preâmbulo, introduz imediatamente um homem, uma mulher ou outro personagem, e nenhum carece de caráter, e de cada um são estudados os costumes.

Arte Poética – Aristóteles file:///C|/site/livros_gratis/arte_poetica.htm (40 of 53) [3/9/2001 15:05:20]

3. Nas tragédias, é necessária a presença do maravilhoso, mas na epopéia pode-se ir além e avançar até o irracional, através do qual se obtém este maravilhoso no grau mais elevado, porque na epopéia nossos olhos não contemplam espetáculo algum.

4. A perseguição de Heitor, levada à cena, mostrar-se-ia inteiramente ridícula: "uns imóveis e que não perseguem, e o outro (Aquiles) que lhes acena com a cabeça negativamente". Numa narrativa, esses detalhes estranhos passam desapercebidos.

5. Ora, o maravilhoso agrada, e a prova está em que todos quantos narram alguma coisa acrescentam pormenores imaginários, com intuito de agradar.

6. Homero foi também quem ensinou os outros poetas como convém apresentar as coisas falsas.

Refiro-me ao paralogismo. Eis como os homens pensam: quando uma coisa é, e outra coisa também é, ou, produzindo-se tal fato, tal outro igualmente se produz, se o segundo é real, o primeiro também é real, ou se torna real. Ora, isto é falso. Daí se imagina que, se o antecedente é falso, mas mesmo assim a coisa existe ou vem a se produzir, estabelece-se uma ligação entre antecedente e conseqüente: sabendo que o segundo caso é verdadeiro, nosso espírito tira a conclusão falsa de que o primeiro também o seja. Disso temos exemplo no episódio do Banho.

7. É preferível escolher o impossível verossímil do que o possível incrível,

8. E os assuntos poéticos não devem ser constituídos de elementos irracionais, neles não deve entrar nada de contrário à razão, salvo se for alheio à peça, como no caso de Édipo ignorante das circunstâncias da morte de Laio; e nunca dentro do próprio drama, como na Electra, onde se fala nos Jogos Píticos(66) e nos Mísios, onde um personagem vem de Tegéia até Mísia, sem proferir palavra.

9. Seria ridículo pretender que a fábula não se sustentaria sem isso. Antes de mais nada, não se deveriam compor fábulas desse gênero; mas, se há poetas que as fazem e de maneira que pareçam ser razoáveis, pode-se introduzir nelas o absurdo, pois o passo inverossímil da Odisséia, que trata do desembarque (de Ulisses pelos feaces), não seria tolerável, se fosse redigido por um mau poeta. Mas, em nosso caso, o poeta dispõe de outros méritos que lhe possibilitam mascarar o absurdo por meio de subterfúgios.

11. Quanto à elocução, deve ser muito acurada só nas partes de ação com menos movimento, que não ostentam nem estudos de caracteres, nem pensamentos; um estilo demasiado fulgurante, exibido em toda a peça, deixaria na sombra os caracteres e o pensamento.

CAPÍTULO XXVI Algumas respostas às críticas feitas à poesia

Sobre os pontos de controvérsia e as soluções para eles, sobre o número e as diferentes espécies de controvérsia, alguma luz derramarão as considerações em seguida:

2. Sendo o poeta um imitador, como o é o pintor ou qualquer outro criador de figuras, perante as coisas será induzido a assumir uma dessas três maneiras de as imitar: como elas eram ou são, como os outros dizem que são ou dizem que parecem ser, ou como deveriam ser.

3. O poeta exprime essas maneiras diversas por meio da elocução, que comporta a glosa, a metáfora e muitas outras modificações dos termos, como as admitimos nos poetas.

4. Acrescentemos que não se aplica o mesmo critério rigoroso da política à poesia, nem às outras artes em relação à poesia.

5. Em arte poética, são duas as ocasiões de cometer faltas: umas referentes à própria estrutura da poesia; outras, acidentais.

6. Se o poeta se propõe imitar o impossível, a falta é dele. Mas se o erro provém de uma escolha mal feita, se ele representou um cavalo movendo ao mesmo tempo as duas patas do lado direito, ou se a falta se refere a algum conhecimento particular como a medicina ou qualquer outra ciência, ou se de qualquer modo ele admitiu a existência de coisas impossíveis, então o erro não é intrínseco à própria poesia.

7. É com este critério que convém responder às críticas relativas aos poetas controversos. Examinemos primeiro o que diz respeito à própria arte: se o poema contém impossibilidades, há falta;

8. no entanto, isto nada quer dizer, se o fim próprio da arte foi alcançado (fim que já foi indicado) e se, desse modo, esta ou aquela parte da obra redundou mais impressionante, como, por exemplo, a perseguição de Heitor.

9. Contudo se o fim podia ser melhor alcançado, respeitando a verdade, a falta é indesculpável, pois tanto quanto possível dever-se-ia evitar qualquer falta.

10.Mas sobre qual destes dois pontos recai a falta: a própria arte ou uma causa estranha acidental? A falta é menos grave, se o poeta ignorava que a corça não tem cornos, do que quando ela não foi representada de acordo com sua figura.

11. Se, além disso, a ausência de verdade é criticada, é possível responder que o autor representou as coisas como elas devem ser, a exemplo de Sófocles, que dizia ter pintado os homens tais quais são.

12. Além destas duas espécies de explicação podemos ainda responder pela opinião comum, tal como ela se exprime acerca dos deuses.

13. Pois é possível que esta opinião sobre os deuses não seja boa nem exata, e que seja verdadeira a opinião de Xenófanes(67): "mas a multidão pensa de modo diferente".

14. Talvez também as coisas não sejam representadas da melhor maneira (para a atualidade), mas como eram outrora; por exemplo, quando (o poeta diz) a respeito das armas: "que suas lanças estavam plantadas eretas como o ferro para o alto"; era esse o uso outrora, como é ainda hoje entre os ilírios.

15. Para saber se uma personagem falou e agiu bem ou mal, não devemos nos limitar ao exame da ação executada ou da palavra proferida, para saber se elas são boas ou más; é preciso ter em conta a pessoa que fala ou age, saber a quem se dirige, quando, por que e para que, se para produzir maior bem ou para evitar maior mal.

16. No exame do estilo importa refutar certas críticas, por exemplo, a referente ao uso da glosa (termo dialetal): em ourhaz men prvton "primeiro os machos", não devemos interpretar "os machos", mas "as sentinelas". De igual modo, a propósito de Dólon — ele era de aspecto disforme — deve entender-se que ele não tinha um corpo desproporcionado, mas apenas um rosto feio, pois os cretenses exprimem por — de belo aspecto — a beleza do rosto. E nesta expressão: zvroteron de ceraie, não se trata de servir o vinho "sem mistura", como se fosse para os bêbados, mas sim de misturar mais depressa.

17. O poeta pôde falar por metáforas, como por exemplo em: "Todos os outros, deuses e guerreiros, dormiam a noite inteira"; e logo a seguir diz: "quando olhava para a planície de Tróia... o ruído das flautas e das siringes". Seguramente, "todos" está em lugar de "muitos" por metáfora, pois o termo "todo" contém a idéia de "muito". Também: "a única que não se deita", deve-se entender por metáfora, pois o mais conhecido é o que está só.

18. Pode tratar-se da acentuação.(...)

19. Outras vezes pela diérese, como nos versos de Empédocles: "Depressa se tornou mortal, o que antes tomara o hábito de ser imortal, e as coisas antes puras tornaram-se mescladas".

20. Outras vezes por anfibologia: "as estrelas percorreram boa parte de seu curso; já passaram mais de dois terços da noite; falta apenas o último", pois o termo plevn(68) tem sentido duplo;

21. Outras vezes trata-se de certa maneira de falar. Por exemplo, ao vinho misturado com água dá-se o nome genérico de "vinho"; daí se pôde dizer que Ganimedes serve esta bebida a Zeus, embora os deuses não bebam vinho. Os operários que na realidade trabalham o ferro, denominam-se "trabalhadores de bronze"; daí dizer-se "cnêmide de estanho novamente fabricada". Todas estas expressões podem resultar de metáfora.

22 Quando um termo parece provocar uma contradição, importa examinar quantas interpretações ele pode tomar no passo em questão, como, por exemplo, em "a lança de bronze aqui se deteve",

23. seria conveniente verificar de quantas maneiras se pode admitir que a lança tenha se detido. Será esta a melhor maneira de compreender, inteiramente oposta ao método de que fala Glauco,

24. a saber: alguns, sem boas razões, formam idéias preconcebidas, depois põem-se a raciocinar e a decidir pela condenação do que se lhes afigura ter sido dito no poema, sempre que vier de encontro à opinião deles.

25. Foi o que sucedeu a propósito de Icário. Pensa-se que ele foi lacedemônio. Parece portanto absurdo que Telêmaco não o tenha encontrado quando foi à Lacedemônia; mas talvez as coisas se tenham passado de modo diferente, a acreditarmos nos cefalênios. Dizem estes que Ulisses foi à terra deles casar-se, e que se trata de Icádio e não de Icário. É provável que o problema seja proveniente de um equívoco.

26. Em suma, devemos atribuir a presença do impossível à própria poesia, ou ao melhor para a situação, ou à opinião corrente.

27. No que diz respeito à poesia, deve-se preferir o impossível crível ao possível incrível. E talvez seja impossível que os homens sejam tais como os pinta Zêuxis;

28. mas ele os pinta melhores porque o paradigma deve ser de valor superior ao que existe; quanto às coisas irracionais referidas pela opinião, temos de admiti-las tais como são propaladas e

29. mostrar que por vezes não são ilógicas, pois é verossímil que aconteçam coisas na aparência

inverossímeis.

30. Quanto às contradições, conforme foi dito, é necessário examiná-las, como se faz com as provas colocadas nos processos, ver se a afirmação refere-se ao mesmo caso e às mesmas coisas e da mesma maneira, se o poeta falou, ele próprio, e por que motivo, e o que pensaria sobre o assunto um homem sensato.

31. Entretanto a crítica tem fundamento, quando se trata do absurdo e da perversidade pura, não havendo então necessidade de se recorrer ao irracional, como fez Eurípedes a propósito de Egeu, ou à maldade de Menelau na peça Orestes.

31. As críticas referem-se a cinco pontos: o impossível, o irracional, o prejudicial, o contraditório, o contrário às regras da arte. As refutações devem ser buscadas nos casos enumerados, e são doze.

CAPÍTULO XXVII Superioridade da tragédia sobre a epopéia

Poder-se-ia perguntar qual das duas é superior à outra, se a imitação épica ou a trágica.

2.Com efeito, se a menos vulgar é a melhor, e se é sempre esta a que se dirige aos melhores espectadores, a que se propõe imitar tudo seria por conseguinte a mais vulgar.

3. Os atores em cena, julgando que o público seria incapaz de sentir caso eles não acrescentassem a interpretação ao texto escrito, às vezes multiplicam os movimentos, semelhando os maus tocadores de flauta que rebolam a fim de imitar o lançamento do disco, ou que arrastam o corifeu, quando acompanham com seu instrumento a representação do Cila.

4. As críticas que os antigos atores dirigem a seus sucessores, deveriam aplicar-se à tragédia. Assim, Minisco tratava Calípides de macaco, por causa da gesticulação forçada demais. O mesmo se dizia de Píndaro. Estes últimos são, assim, em relação aos primeiros, o que toda a arte trágica é em relação à epopéia.

5. Esta, segundo se diz, é feita para um público de bom gosto, que não precisa de toda aquela

gesticulação, ao passo que a tragédia se destina ao vulgo; e se a tragédia tem algo de banal,

manifestamente é de qualidade inferior.

6. Em primeiro lugar, esta crítica não vai endereçada contra a arte do poeta, mas sim contra a do ator, pois que até o rapsodo pode levar a imitação ao ponto de se servir de gestos, como fazia Sosístrato, ou mesmo entremeá-la com o canto, como Mnasíteo de Oponte.

7. Em seguida, não devemos condenar toda gesticulação, nem toda dança, mas só a dos maus

executantes, como era censurado Calípides e em nossos dias o são alguns outros, por imitarem mulheres de condição servil.

8. Acresce que a tragédia, mesmo não acompanhada da movimentação dos atores, produz seu efeito próprio, tal como a epopéia, pois sua qualidade pode ser avaliada apenas pela leitura. Portanto, se ela é superior em tudo o mais, não é necessário que o seja neste particular.

9. Em seguida, ela contém todos os elementos da epopéia;

10. com efeito, a tragédia pode utilizar o metro desta última, e, além disso — o que não é de pouca

importância — dispõe da música e do espetáculo, que concorrem para gerar aquele prazer mais intenso que lhe é peculiar.

11. Além disso, sua clareza permanece intacta, tanto na leitura quanto na representação.

12. E mais: com extensão menor que a da epopéia, mesmo assim ela atinge seu objetivo, que é imitar; ora, o que é mais concentrado proporciona maior prazer do que o diluído por longo espaço de tempo – pensemos no que seria o Édipo tratado no mesmo número de versos que a Ilíada!

13. Além do mais, a imitação em qualquer epopéia apresenta menor unidade que na tragédia. A prova é que, de qualquer imitação épica se extraem vários argumentos de tragédia, de modo que, se o poeta em sua epopéia trata uma só fábula, ela será exposta de modo forçosamente breve, e resultará bem mesquinha, ou então, conformando-se às dimensões habituais do gênero, resultará prolixa. Mas se trata muitas fábulas, ou seja, se a obra é constituída por muitas ações, carece de unidade.

14. Por exemplo, a Ilíada comporta muitas partes deste gênero, bem como a Odisséia, partes que em si são extensas, e no entanto estes poemas formam um todo da maneira mais perfeita e constituem, no mais alto grau, a imitação de uma arte única.

15. Portanto, se a tragédia se distingue por todas estas vantagens e mais pela eficácia de sua arte (ela deve proporcionar, não um prazer qualquer, mas o que é por nós indicado), é evidente que, realizando melhor sua finalidade, ela é superior à epopéia.

16. Falamos sobre a tragédia e sobre a epopéia, sobre a natureza e espécie das mesmas, sobre seus elementos essenciais, número e diferença dos mesmos, sobre as causas que as tornam boas ou más, enfim sobre as críticas e os efeitos que provocam.

Fichamentos diplomáticos de Isaias Carvalho

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