Cânone... Pastiche...

CARVALHO, Isaías Francisco de. Cânone, influência, déficit; pastiche, paródia, digressão. In: Omeros-Walcott: outrização produtiva: uma poética semi-utópica dos encontros culturais. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, Salvador, 2003. p. 58-64

Cânone, influência, déficit; pastiche, paródia, digressão

O escritor latino-americano brinca com os signos de um outro escritor, de uma outra obra.

SILVIANO SANTIAGO, Uma literatura nos trópicos

Abstrata como pareça ser a idéia de uma América Latina – enquanto uma unidade – a fala de Silviano Santiago, a partir do “entre-lugar do discurso latino-americano” (2000, p. 9-26), é uma conjuntura que também vem contribuir para a descrição da poética da outrização produtiva de Omeros-Walcott:

Poder-se-ia surpreender a originalidade de uma obra de arte se se institui como única medida as dívidas contraídas pelo artista junto ao modelo que teve necessidade de importar da metróple? Ou seria mais interessante assinalar os elementos da obra que marcam sua diferença? [...] é preciso de uma vez por todas declarar a falência de um método que se enraizou profundamente no sistema universitário: as pesquisas que conduzem ao estudo das fontes ou das influências (SANTIAGO, 2000, p. 17).

A escolha neste estudo já foi feita: não se toma Omeros-Walcott como uma obra deficitária ou devedora do cânone ocidental de que lança mão em seu ‘brincar com os signos de outros escritores e de outras obras’. Um brincar que parece ter o sentido que Sigmund Freud lhe empresta, ao se referir ao trabalho do escritor criativo, o qual “faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre o mesmo e a realidade” (FREUD, 1970, p. 153). O que se faz aqui é considerar Omeros-Walcott um ‘brinquedo estético’ levado muito a sério. Como aponta Paulo Vizioli, trata-se de um ‘brincar’ com os cânones ocidentais, como o trecho a seguir pode demonstrar:

Esse Homero é o ponto de partida para todas as analogias da obra, permitindo transformar o mar das Antilhas no mar Egeu, os pescadores negros em heróis da Ilíada, e o seu drama na guerra de Tróia ou nas peregrinações de Odisseu (VIZIOLI, 1994, p. 10).

Brinquedo que, ironicamente, elevou-o ao cânone. O sério não é o possível real que permeia Omeros-Walcott, mas a construção em versos que põe em diálogo relacional mundos distintos: a língua e os modos de expressão do ‘centro’ – Inglaterra, Europa – e os valores e os costumes da margem: o Caribe, a ilha de Santa Lúcia, a herança africana. O sério é esse brinquedo poético de ab-rogação e reescritura que intenta posicionar o outro da colonização no grande discurso da contemporaneidade, sendo exatamente nesse nível que Omeros-Walcott serve como paradigma da atitude de outrização produtiva que se tenta delinear neste vôo. É um brinquedo semi-utópico, especialmente no nível da produção literária.

Não se pretende permitir, é relevante destacar, que “os fantasmas do cânone e da Grande Literatura” (EASTHOPE, 1991, p. 54) assombrem esta análise a ponto de perpetuá-los pela mera negação. Por isso, não se pode prescindir do reconhecimento de que essa obra caribenha se presta sobremaneira como exemplar na discussão – ultrapassada, alguns podem dizer – a respeito do cânone, este desprovido de suas conotações auráticas fixas. Talvez, principalmente, por se tratar de uma obra ungida pelo prêmio Nobel, inserida em um momento no qual, segundo Néstor Canclini:

a autonomia do campo artístico, baseada em critérios estéticos fixados por artistas e críticos, é diminuída pelas novas determinações que a arte sofre de um mercado em rápida expansão, onde são decisivas forças extraculturais. [...] os agentes encarregados de administrar a qualificação do que é artístico – museus, bienais, revistas, grandes prêmios internacionais – reorganizam-se em relação às novas tecnologias de promoção mercantil e de consumo (CANCLINI, 1998, p. 56).

Portanto, é pertinente questionar se Omeros-Walcott tem as ‘qualidades’ exigidas para ser ‘museificado’, colocado na vitrine para apreciação internacional. Uma obra que, assim, não seria devedora do cânone estabelecido pela academia sueca, mas sim integrada e inserida, legítima por sua própria conta. Ou não passaria de uma condescendência ao efervescente movimento de ‘escritura de volta ao centro’ proposta pela literatura pós-colonial? Com a crescente inserção de intelectuais ‘terceiro-mundistas’ na arena acadêmica e estética dos grandes centros da Europa e dos Estados Unidos talvez não seja possível ignorar o efeito “bumerangue” (CÉSAIRE, 1994, p. 177) da herança colonial. E basta citar apenas alguns exemplos de recentes ganhadores do Nobel nessa condição: Wole Soyinka, da Nigéria, em 1986; Nadine Gordimer, da África do Sul, em 1991; o próprio Derek Walcott, de Santa Lúcia, em 1992; V. S. Naipaul, de Trinidade Tobago – naturalizado inglês – em 2001; e o último laureado, em 2003, outro sul-africano, J. M. Coetzee.

Ainda há outras perguntas, que não podem ser respondidas nesta arena, mas que também têm a sombra da noção de cânone em relação a Omeros-Walcott enquanto uma obra devedora, como aponta Décio Torres Cruz:

a obra de Derek Walcott seria interpretada (como ocorre nas universidades americanas) como ‘mimética’ da tradição anglo-saxônica se ele tivesse nascido na Inglaterra ou nos Estados Unidos? Teria ele ganho o Prêmio Nobel de Literatura se tivesse permanecido em Santa Lúcia e jamais tivesse morado em um país de ‘Primeiro Mundo’? Teria Walcott ganho esse prêmio se seu trabalho não demonstrasse a influência da tradição canônica? (CRUZ, 1998, p. 133).

Uma resposta possível a tais questionamentos só pode vir de um trabalho precário de levantamento sobre nomes ‘terceiro-mundistas’ que alcançaram, por exemplo, a unção do prêmio Nobel de Literatura, como a tabela abaixo, que pode dar uma idéia do que significa para o caribenho Derek Walcott ser laureado pela Academia Sueca:

Tabela 1 Número de laureados pelo prêmio Nobel de Literatura (1901-2003)

Fonte: The official web site of The Nobel Foundation (2003).

Alfred Nobel, mais conhecido pela invenção da dinamite, idealizador desse prêmio, deixou a seguinte recomendação: "é meu desejo expresso de que, ao outorgar os prêmios, nenhuma consideração deve ser feita sobre a nacionalidade dos candidatos, de modo que os mais valorosos receberão o prêmio, sendo escandinavo ou não".[1] No entanto, até 2002, dos laureados pela academia sueca, cerca de 70% eram europeus e 11% americanos, contradizendo o expresso desejo de Alfred Nobel, a não ser que se acredite na pureza e na localização geográfica da noção de valor literário. Os Estados Unidos, como um país singular e fora do domínio geopolítico europeu – que representa um conglomerado de países –, estão em segundo lugar claramente por serem uma potência capitalista mundial de língua inglesa, ao passo que a antiga União Soviética e a Rússia detêm apenas 3% do total (a Guerra Fria ‘naturalmente’ teve muita influência nesse ‘detalhe’), e o Canadá, por exemplo, não tem laureados. Até mesmo entre os europeus, as distinções são claras: nunca um austríaco foi laureado, para tomar apenas um caso. Outrossim, a língua última flor do Lácio apenas conquistou o prêmio Nobel em 1998, com o português José Saramago. Não se levanta essa questão para despertar o ressentimento em relação ao prêmio Nobel, como parece ser o caso de Fernando Monteiro:

Em 1998, quando a decisão ‘política’ teria sido, quem sabe, premiar pela primeira vez a língua de Camões, como imaginar que iriam preterir a obra de um criador de mundos – de raiz popular – do tipo popular de Jorge Amado, em favor do tatibitate pós-comunista de Saramago? (MONTEIRO, 2002, p. 31).

Consciente de que se trata de uma questão ‘política’, Monteiro se contradiz ao se surpreender com ressentimento diante do fato de um escritor brasileiro ter sido preterido em favor de um europeu, mesmo que falante de uma língua comum. Em síntese, com essas considerações mínimas pretende-se apenas oferecer uma ilustração da importância do feito de Derek Walcott em nome de uma outrização produtiva do Caribe.[2] Por ‘condescendência’ do politicamente correto ou não, o fato é que o ‘vôo do andorinhão do Caribe’ alcançou a academia sueca, tornando-se, em um nível mundial, um meio de outrização produtiva da cultura de Santa Lúcia diante das culturas dominantes. Uma outrização produtiva que também implica promoção e visibilidade para culturas tradicionalmente silenciadas pela crítica literária internacional especializada. Afinal,

Ainda que o Prêmio Nobel nem sempre possa ser tomado como padrão de excelência literária, não se lhe pode negar o valor promocional. Veja-se o caso ainda recente de Derek Walcott. Por mais temerária que fosse, uma editora brasileira jamais se abalançaria a comprar os direitos e mandar traduzir Omeros, o mais ambicioso poema desse obscuro poeta das Antilhas Inglesas (PAES, 1997, p. 123).

Apesar do adjetivo ‘obscuro’ poder ser questionado, o que José Paulo Paes coerentemente declara é a possibilidade de interlocução proporcionada pela unção do prêmio Nobel, sem a qual Omeros-Walcott não teria chegado aos leitores brasileiros, bem como provavelmente não estaria sendo o objeto-sujeito deste trabalho-vôo. E mesmo com esse prêmio, um dos principais detratores dos estudos de cultura, Harold Bloom (1994), que cunhou o termo “Escola do Ressentimento”, talvez jamais inserisse Omeros-Walcott em seu “Cânone Ocidental”. Inclusive porque, como um ‘instrumento’ para uma outrização produtiva do Caribe, dentro do ambiente de integração entre cultura e sociedade pretendido pelos estudos culturais pós-coloniais, esse épico caribenho feriria um dos princípios fundamentais da visão canônica de Bloom, como se pode atestar pela seguinte assertiva:

O movimento de dentro da tradição não pode ser ideológico nem colocar-se a serviço de quaisquer objetivos sociais, por mais moralmente admiráveis que sejam. A gente só entra no cânone pela força poética, que se constitui basicamente de um amálgama: domínio da linguagem figurativa, originalidade, poder cognitivo, conhecimento, dicção exuberante. [...] O Cânone Ocidental, seja lá o que seja, não é um programa de salvação social (BLOOM, 1994, p. 36).

Alguns críticos culturais um pouco mais militantes poderiam rechaçar a ‘validade’ deste vôo no campo dos estudos culturais pós-coloniais apenas por ter ‘concedido’ a presença de um Harold Bloom, mesmo que seja para tratá-lo ironicamente ao questionar e problematizar seu lugar de fala. No entanto, para que o argumento sobre outrização produtiva tenha mais coerência, também se deve apresentar e discutir o ‘ranço’ essencialista e conservador dos que se mantêm reféns do cânone tradicional, como se este fosse um constructo autônomo, dissociado de suas condições de enunciação e constituição. Ao pregar a separação radical entre sociedade e literatura, Harold Bloom assinala que as vozes contrárias à inclusão e à relação entre culturas não se calam apenas porque se decidiu ignorá-las; do mesmo modo que as vozes antes silenciadas por séculos de outrização tiveram de começar a ser ouvidas em algum momento. Daí se poder vislumbrar Omeros-Walcott como um desses casos, em um nível dos mais eficientes para a outrização produtiva de seu povo e de sua terra, numa relação ambígua e profícua de subordinação e subversão dos cânones plurais da herança colonial. Mesmo que, em uma análise precipitada, seja possível indicar a subserviência ou mera assimilação do cânone ocidental ao se ler o seguinte diálogo entre Derek Walcott e Omeros:

‘Os deuses e semideuses não têm muita serventia para nós.’

‘Esqueça os deuses’, rosnou Omeros, ‘e leia o resto.’

Houve então o silêncio que qualquer autor ofendido

conhece, rompido pelo clamor de uma fragata,

enquanto olhávamos ambos a água azul separadora;

e, naquele golfo, murmurei: ‘Sempre ouvi sua voz

naquele mar, mestre; era o mesmo canto

que o do xamã no deserto; e quando eu era garoto

seu nome era amplo como uma baía, enquanto eu caminhava ao longo

do cenho encaracolado da rebentação; a palavra ‘Homero’ significava [júbilo –

júbilo na batalha, no trabalho, na morte [...]’ (WALCOTT, 1994, cap. LVI, iii).[3]

Porém, Omeros – Homero – é o ‘mestre’ que lhe acompanha desde sua infância, mas perceba-se a apropriação sem aura contida na fala de Derek Walcott, quando desconsidera os deuses e semideuses da Odisséia para o contexto caribenho. Do ‘júbilo’ homérico surgiu o maior poema já escrito pelos/para os povos do Mar do Caribe, mas nesse diálogo entre os dois poetas, separados por oceanos e séculos, discute-se no mesmo nível de legitimidade a importância do trabalho de ambos para representar seus contextos. É por isso que, em oposição às outrizantes e hierarquizantes noções de cânone, influência e déficit, “o trabalho do escritor em lugar de ser comparado ao de uma tradução literal, propõe-se antes como uma espécie de tradução global, de pastiche, de paródia, de digressão” (SANTIAGO, 2000, p. 21; grifo do autor). Desse modo é que Omeros-Walcott deve ser pensado como em um entre-lugar que preza pela outrização produtiva, inclusive no nível estético, numa performatividade que leva à desconstrução das noções de cânone e voz centrais, as quais podem sugerir que a periferia só pode ‘alcançar’ a modernidade através da imitação, como parece ser o caso de Robert Hamner, estudioso de Derek Walcott, ao afirmar que a literatura produzida por caribenhos até o presente é “derivada, subserviente em forma, em estilo, se não em conteúdo, às tradições estrangeiras européias e americana” (HAMNER, apud CRUZ, 2000b, p. 152). O que apropriadamente estabelece um paralelo com a visão de Sônia Torres sobre o embate centro/periferia quanto à possibilidade da fala marginal: “uma perspectiva perversa porque nos aprisiona: somos relegados ao status de cópia, e, portanto, inferiores” (TORRES, 1996, p. 187). É, nesse prisma, tarefa do pesquisador descrever e rasurar algumas das noções de hierarquia e de discurso competente entre as diferentes manifestações culturais.

[1] No original: “it is my express wish that in awarding the prizes no consideration whatever shall be given to the nationality of the candidates, so that the most worthy shall receive the prize, whether he be a Scandinavian or not.” Alfred Nobel deixou esta e outras recomendações em testamento. Fonte: The official web site of The Nobel Foundation. Disponível em: <http://www.nobel.se>. Acesso em: 05 out. 2003.

[2] A tabela 1 acima e a outra tabela mais detalhada no apêndice C podem servir para muitas reflexões que não cabem aqui.

[3] No original: “‘The gods and the demi-gods aren’t much use to us.’ / ‘Forget the gods,’ Omeros growled, ‘and read the rest.’ / Then there was the silence any injured author / knows, broken by the outcry of a frigate-bird, / as we both stared at the blue dividing water, / and in that gulf, I muttered, ‘I have always heard / your voice in that sea, master, it was the same song / of the desert shaman, and when I was a boy / your name was as wide as a bay, as I walked along / the curled brow of the surf; the word ‘Homer’ meant joy, / joy in the battle, in work, in death [...]”.

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