Caetano Veloso como intelectual diaspórico

Estrangeiro: Caetano Veloso como intelectual diaspórico[1]

Artigo completo nos anais do III Seminário de Língua Portuguesa e Ensino e I Colóquio de Lingüística, Discurso e Identidade; UESC/ Ilhéus, 2008.

RESUMO: A proposta deste trabalho é (re)significar metaforicamente o conceito de diáspora, no âmbito da Crítica Cultural, para caracterizar Caetano Veloso como artista-intelectual diaspórico no cenário cultural brasileiro, condição que é exemplificada pela análise de fragmentos de sua obra, mas principalmente por uma entrevista que ele concedeu à revista Cult, em 2001. A partir de considerações de Stuart Hall e de Silviano Santiago, dentre outros teóricos da Crítica Cultural, a diáspora aqui é tomada como o encontrar-se num entre-lugar – na(s) fronteira(s) dos vários campos do conhecimento, através dos quais esse sujeito diaspórico migra como um erudito pós-moderno, dentro e fora do circuito acadêmico. Primeiramente, definiu-se e delimitou-se o conceito revisitado de diáspora. Portanto, o desafio não é o de criar um novo conceito, ou um novo paradigma, mas a modulação do diaspórico com o pretexto de penetrar o universo caetaneano, emblemático da atitude intelectual pós-moderna. Em um segundo momento, são oferecidos exemplos que demonstram o “Caetano diaspórico”, visando a uma análise crítico-descritiva da tomada de posição desse “doce bárbaro” diante da cena intelectual brasileira, para colocar essa concepção do diaspórico à prova. Finalmente, problematiza-se o lugar de fala – condição para se trabalhar no campo da Crítica Cultural –, tanto pela perspectiva do sujeito-pesquisador, quanto pelo ângulo dos objetos e recortes epistemológicos.

Palavras-chave: Caetano Veloso; diáspora; Crítica Cultural; entre-lugar.

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Introdução

Caetano Veloso não é a realização concreta do “super-homem”, como Silviano Santiago parece insinuar quando o apresenta como deus, artista e pessoa, ou como superior, diferente e semelhante, tudo ao mesmo tempo (SANTIAGO, 2000). O fato é que, enquanto o Übermensch de Nietzsche (2005) fica como uma promessa no horizonte humano na contemporaneidade, Santiago se refere aos três momentos do significante “superastro”, para caracterizar Caetano durante um show. É esse superastro, hoje mais do que nunca consolidado na mercantilização do estético – não como uma escolha, mas como uma imposição para a visibilidade artística –, que me proponho a tomar como exemplar do intelectual diaspórico, ressignificando o conceito de diáspora. Digo exemplar porque o fundamental não é descrever ou defender a genialidade musical ou intelectual de Caetano, mas tomá-lo como representante de uma geração de artistas-intelectuais brasileiros da segunda metade do século passado que se formaram no âmbito da contra-cultura, marginais aos padrões canônicos do século XIX. Não quero fazer apologia gratuita. Nem colocar Caetano Veloso como além do bem e do mal ou como um oráculo que tem respostas para todas as problemáticas do sujeito contemporâneo. Não devemos perder de vista que ele é um artista, e como tal exerce controle sobre o que enuncia em sua arte. O "estrangeiro" do título deste trabalho se refere secundariamente a uma de suas canções, mas estabelece principalmente o ethos diaspórico da obra contida no nome próprio Caetano Veloso: o longe e o perto, o familiar e o estranho a si mesmo e aos signos de seu contexto cultural.

Desse modo, em um primeiro momento, defino e delimito o sentido revisitado de diáspora. O desafio não é o de criar um novo paradigma. Tento a modulação do diaspórico com o pretexto explícito de penetrar o universo caetaneano, emblemático de uma atitude condizente com o percurso intelectual contemporâneo. Em um segundo momento, apresento exemplos que demonstram o caráter diaspórico de Caetano, visando a uma análise crítico-descritiva da tomada de posição desse doce bárbaro diante da cena intelectual brasileira, para colocar essa concepção do diaspórico à prova. São migrações no território caetaneano, principalmente através da entrevista que ele concedeu à revista Cult (n. 49, agosto/2001). Em um terceiro momento, dentre considerações gerais, explicito meu próprio lugar de fala – condição para se trabalhar no campo da Crítica Cultural, tanto pela perspectiva do sujeito-pesquisador, quanto pelo ângulo dos objetos e recortes epistemológicos.

1 Ressignificação conceitual de diáspora aplicada ao universo caetaneano

“Pesquisa insana que alimenta as academias de letras, essa de investigar o ininvestigável: o que fica fora do nome, o gesto da escrita, a paixão que não se vê na letra impressa”.

Michel Foucault, O que é um autor?

Homi Bhabha, Gayatri Spivak e Edward Said são exemplos de intelectuais diaspóricos no sentido específico do termo no âmbito da Crítica Cultural, mais precisamente no campo dos estudos pós-coloniais. Numa perspectiva comungada por outros diaspóricos como Paul Gilroy, Derek Walcott e Stuart Hall, ser diaspórico é estar na dimensão das identidades sempre incompletas, dispersas geográfica e culturalmente, dispostas em um meio-termo entre valores dominantes ressignificados e uma origem (racial, étnica, religiosa, etc) não mais essencializada, deixando abertos os caminhos para novas formas de apreensão e negociação com o texto do mundo.[2] Vale a pena anotar que a Diáspora é, de um modo geral, a dispersão de membros de uma nação ou cultura particulares, mas também foi a dispersão dos judeus em tempos remotos antes de Cristo, bem como ainda hoje; foi ainda a dispersão violenta de africanos como escravos para o Novo Mundo; e tem sido a mais recente dispersão de intelectuais dos países “periféricos” em direção às metrópoles.

Dos perigos de se metaforizar com um termo já tão marcado ao longo da história, talvez o mais problemático seja o de se “limpar” o diaspórico de algumas de suas marcas mais profundamente enraizadas, a saber: o caráter de um deslocamento forçado e a nostalgia e promessa da terra prometida. O diaspórico como vislumbro não é teleológico nem implica (mesmo que não elimine) banimento territorial. De qualquer modo, Caetano, como é sabido, viveu exilado em Londres no início de sua carreira. No entanto, utilizo “diaspórico” como uma metáfora que, assumindo o sentido de dispersão territorial acima, é adicionada de um olhar ampliado para abranger todo posicionamento intelectual que hoje possa lidar com objetos estrangeiros a um campo ou lugar de enunciação específicos, a partir dos quais o intelectual (o pesquisador, o estudioso, o artista, o crítico, etc) fala e se posiciona. Mesmo que se referindo à cultura caribenha, e portanto a uma diáspora africana, a delimitação que Stuart Hall faz desse termo se adapta muito bem ao propósito de ressignificação conceitual proposto para o caso caetaneano:

A experiência da diáspora como a intenciono aqui é definida não pela essência ou pureza, mas pelo reconhecimento de uma diversidade e de uma heterogeneidade necessárias; por uma concepção de ‘identidade’ que vive com e através, não a despeito, da diferença; pelo hibridismo. As identidades diaspóricas são aquelas que estão constante e renovadamente se produzindo e se reproduzindo, através da transformação e da diferença (HALL, 1994, p. 401-2; t.a.).[3]

Nesse sentido, o intelectual se coloca ao mesmo tempo perto e distante, dentro e fora, familiar e estranho aos objetos que eventualmente toma para análise e que estejam para além das fronteiras de seu suposto campo de formação. Em entre-lugares, para convidar também Homi Bhabha (1998), que informam a subjetivação – individual ou coletiva – no ato de definir a própria idéia de sociedade. Assim como Stuart Hall, I use this term here metaphorically, not literally (HALL, 1994, p. 401).[4]

É, pois, sobre o pano de fundo do “entre-lugar", especialmente "do discurso latino americano”, como proposto por Silviano Santiago, que coloco essa atitude diaspórica para além da (mas englobando-a) questão do papel do intelectual diante do relacionamento entre nações que se inserem na mesma cultura do Ocidente, mas com status econômico desigual. Centro o foco no espaço mesmo da atuação desse intelectual a partir de onde fala, de seu lugar de diferença. O movimento metodológico proposto por Santiago é o que será assumido aqui, pois o estudo das fontes e ou das influências não ajudará muito na distinção de uma postura diaspórica no contexto em que Caetano atua. Um contexto latino-americano em que “as leituras [...] não são nunca inocentes. Não poderiam nunca sê-lo” (SANTIAGO, 2000, p. 22). O diaspórico, assim como o que se coloca no entre-lugar de Silviano, sabe que estará brincando com os signos de um outro, de uma outra obra, mas o que importa é a tradução transformadora desses signos em novos contextos, sem a noção de déficit em relação a um “centro” (SANTIAGO, 2000, p. 9-26). Desse modo, não parto de uma tabula rasa: Caetano não é o primeiro intelectual que se pode chamar diaspórico, mesmo que, na perspectiva que proponho aqui, seja uma exemplar muito caratcerístico.

Mas uma pergunta desafia: o que o “diaspórico” traria como suplemento para o entre-lugar de Silviano Santiago e a diáspora de Stuart Hall na caracterização de intelectuais como Caetano Veloso? É o impulso de síntese (consciente da impossibilidade de fechamento cabal) dessas noções (e de outras) que faz desse esforço um exercício válido. Apontando que uma postura diaspórica sintetiza idéias como hífen, entre-tempo, interstício, limiar.[5] Só que agora não mais como um posicionamento apenas de (des)encontros culturais conflitivos entre grupos, mas relações que, mesmo perpassando a questão do choque entre "comunidades", traz o embate produtivo do encontro entre campos de conhecimento, entre estruturas distintas de pensar o homem e a cultura. E essa postura diaspórica pode ser assumida e encarada por intelectuais de vários matizes, pois o diaspórico é engajado e comprometido. Ele quer influir na sociedade. Mas é

comprometido com o quê? (...) é um sinal de maturidade política aceitar que haja muitas formas de escrita política cujos diferentes efeitos são obscurecidos quando se distingue entre o "teórico" e o "ativista" (BHABHA, 1998, p. 46).

Nesse mesmo sentido, o diaspórico tem em si a postura do "intelectual orgânico" gramsciano como ressignificado por Stuart Hall (1994) e Frederic Jameson (1994), por exemplo. Um intelectual que se sabe parte da cultura em que se contextualiza – uma figura pública, a exemplo de Caetano –, mas que também tem noção de qual instância de poder participa, "já que é uma função mediada pela geopolítica, e seu valor é conferido pelo próprio sistema mundial e pelo [seu] posicionamento nele" (JAMESON, 1994, p. 47). O diaspórico sabe que se presta a assumir diferentes papéis e posições, cada um se sobressaindo em relação aos demais em contextos distintos. É um teórico ativista. É um ativista teórico, em um estágio de atuação em que a postura pós-moderna já está suficientemente antropofagiada pelo intelectual que se quer diaspórico: “[o pós-moderno] é fundamentalmente contraditório, deliberadamente histórico e inevitavelmente político” (HUTCHEON, 1991, p. 20), características marcantes no percurso caetaneano, como exemplificadas a seguir.

2 A Voz Diaspórica Caetaneana

Do fundo escuro do coração do hemisfério sul, de dentro da mistura de raças que não assegura nem degradação nem utopia genética, das entranhas imundas (e, no entanto, saneadoras) da internacionalizante indústria do entretenimento, da ilha Brasil pairando eternamente a meio milímetro do chão real da América, do centro do nevoeiro da língua portuguesa, saem estas palavras (...) sobre o gosto da vida neste final de século.

Caetano Veloso, Verdade tropical

Adicionada à descrição inicial do diaspórico, uma epígrafe de fôlego para estabelecer certa cumplicidade com Caetano: em um momento que pode ser sintetizado como Crítica Cultural, na postura metodológica de sempre contextualizar, inclusive o contexto, o diaspórico estará constantemente ressignificando sua própria história. Por isso que este trabalho se apresenta mais contextual e conceitual do que propriamente textual. Entretanto, é possível fazer uma leitura desse posicionamento no que se pode chamar de um “projeto ético-estético” caetaneano. Que sinais captados a partir da superfície da textualidade do artista-intelectual Caetano Veloso demonstram esse caráter diaspórico?

Pode-se dizer que ele se articula e se rearticula diante dos/com os discursos hegemônico e dominante da cultura brasileira e mundial. A tendência metamórfica e aberta do diaspórico pode ser dita pelo próprio Caetano: “manter o arco teso, para mim, é não deixar afrouxar, é não deixar tampouco simplificar as coisas para mim com uma adesão ao que [os concretistas] já trazem como programa” (VELOSO, 2001, p. 54). O projeto ao qual o diaspórico se une é o das ambigüidades fragmentadas não-ressentidas, muito peculiar ao momento contemporâneo.

A tentativa caetaneana de localização discursiva “sobre o gosto da vida [no final do século XX]”, além de ser de uma força expressiva relevante, traz em seus significantes particulares significados que informam muito mais do que um simples local de enunciação. Informam a multiplicidade híbrida e coerente de todo um projeto ético-estético profundamente envolvido com a cultura brasileira, sem cair em um provincianismo limitador.

O Caetano diaspórico não se deixa fechar por delimitações absolutas. E o diaspórico não deve ser um absoluto. Traços gerais, no entanto, podem ser delineados a partir da entrevista que concedeu a Bernardo Vorobow e Carlos Adriano, da revista Cult (n. 49, agosto; 2001). Mesmo com a consciência de que em uma entrevista a “autoridade” não é o entrevistado, mas os entrevistadores, Caetano faz uma espécie de resumo do livro “Verdade Tropical”, dentro dos limites de uma revista. É chegado o momento de deixar Caetano falar, “do centro do nevoeiro da língua portuguesa”, a partir dessa entrevista, sem comentários intermediários, pois o objetivo é oferecer um retrato recortado de alguns desses traços da multiplicidade híbrida que caracteriza o ser diaspórico.

2.1 Experimentação

Mas realmente a leitura de Joaquim Nabuco (...) é um gesto de grande abertura - musicar um texto em prosa e relativamente reflexivo, que aparentemente seria hostil à música (VELOSO, 2001, p. 39).

Eu sou entusiasta (...): eu sinto muita atração por esse ambiente mental do experimental, que é uma espécie de radicalização da condição da modernidade na arte do século XX (VELOSO, 2001, p. 49).

2.2 Relação com o Mercado

(...) fiz uma canção chamada "Livros", por causa de eu ter escrito um livro. (...) É uma brincadeira do mercado; uma brincadeira de considerar as duas coisas como produto para o mercado (VELOSO, 2001, p. 39).

Meus discos não vendem muito. (...) Meus shows fazem sucesso, o pessoal vai ver (VELOSO, 2001, p. 55).

(...) eu me sinto muito distante do mercado; eu não sou nem consumidor nem produtor com o olho no mercado. Mas não tenho horror ao mercado, eu acho que o mercado trouxe esse mundo das liberdades individuais, trouxe a sociedade moderna (VELOSO, 2001, p. 55).

2.3 Análise da Indústria Cultural

(...) a novela brasileira na televisão inovou muito e criou um público de massa muito mais sofisticado do que se esperaria. (...) Ela tem de melhorar para ter público grande (VELOSO, 2001, p. 42).

O cinema pode estimular, inibir, expressar, embotar, criar pensamentos. A música e a pintura também podem tudo isso. O cinema é muito capaz de poesia. Pasolini vivia falando num cinema de poesia, mas Godard é um cineasta mais poeta do que Pasolini (VELOSO, 2001, p. 62).

2.4 Análise de discursos acadêmicos

(...) há esses grandes intelectuais conservadores que escrevem contra a arte moderna. (...) como o próprio Lévi-Strauss, que foi um militante cubista quando jovem e é hoje um verdadeiro cruzado contra a arte moderna em toda linha (VELOSO, 2001, p. 46).

2.5 Análise Lingüístico-Semântica

Mais especificamente do que "saudade", "luar" é uma palavra unicamente da língua portuguesa (VELOSO, 2001, p. 48).

"Língua" nasceu da vontade de usar os procedimentos do rap como veículo. (...) E o tema de gostar de falar apareceu logo, o que me levou a celebrar a língua portuguesa (...). Gosto muito de que sejamos América portuguesa e não espanhola, holandesa, francesa ou inglesa. É uma desvantagem que tomo como uma bênção (VELOSO, 2001, p. 55).

2.6 Análise do Campo Estético

O que atrai no barroco é que ele resulta ser uma arte mais do código do que da mensagem. Muita gente acha incoerente que os enxutos poetas concretos saúdem o barroco. Mas é com ele que eles têm mais profunda identificação (VELOSO, 2001, p. 50).

(...) ao mesmo tempo que eu não respeito essa idéia de (...) alta cultura e baixa cultura, eu não acho que seja saudável uma confusão desse tipo que eu evitei - de valorizar por uma parecença exterior ou de dicção com a poesia respeitável.... (VELOSO, 2001, p. 39).

Como se pode concluir, mesmo que provisoriamente, pelos poucos recortes de blocos discursivos citados acima, bem como por um olhar panorâmico de todo o corpo de obras e atitudes caetaneanas, o gesto desse diaspórico de Santo Amaro não o deixa ser reduzido a apenas um rótulo (se não é possível escapar a rótulos). Ele é músico, letrista, poeta, cantor, ator, diretor de cinema, acadêmico, filósofo, escritor, popstar/superstar, promotor cultural, analista da indústria cultural, lingüista, crítico de arte. Em uma palavra: diaspórico. Ainda nessa entrevista, mas principalmente de modo mais aprofundado em "Verdade Tropical", as referências a campos do conhecimento e da cultura, bem como a indivíduos e idéias sobre uma vasta gama de interesses das humanidades e da sociedade como um todo, fazem com que Caetano seja um exemplar muito apropriado para caracterizar o além do simplesmente intertextual ou interdiscursivo: uma leitura-postura diaspórica do mundo.

De forma breve, tomo algumas canções para traçar também um percurso individual, no sentido mesmo de uma diáspora territorial, sem esquecer que esse sentido do diaspórico não é o privilegiado neste trabalho. Assim, em “Trilhos Urbanos”, Caetano sintetiza (psicanaliticamente) sua tarefa estético-existencial: “meu trabalho é te traduzir”, sendo o “te” sua Santo Amaro natal; por sua vez, “Sampa” é uma tentativa de leitura diaspórica de uma alteridade estonteante – a metrópole São Paulo: “(...) eu citando Décio Pignatari, que já estava citando Oswald de Andrade – fala do ‘avesso do avesso do avesso’. Porque o Brasil é um pouco o avesso do mundo e São Paulo é o avesso do Brasil (...)” (VELOSO, 2001, p. 55). E “London, London” é a lírica do exilado, é a diáspora radical vivenciada no velho Continente, a partir de Londres. Uma volta ao tema da migração territorial apenas para relembrar que o diaspórico também inclui essa movimentação na superfície da Terra, mesmo que em escalas pequenas ou apenas nacionais.

Um trabalho mais extenso poderia dar conta de modo mais completo do diaspórico que pode ser depreendido das letras das canções de Caetano. Mas é do conhecimento do senso comum essa pluralidade híbrida que também (ou mais precisamente) inunda a poética especificamente musical desse "doce bárbaro amaro". Desde uma postura política de questionamento, como em “é proibido proibir” ou “o Haiti é aqui”, até olhares menos engajados, como “muito romântico”. Na perspectiva do diaspórico ressignificado, vejamos um trecho da canção que participa do título deste trabalho – “O estrangeiro”:

O pintor Paul Gauguin amou a luz da Baía de Guanabara

O compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela

A Baía de Guanabara

O antropólogo Claude Lévy-Strauss detestou a Baía de Guanabara

Pareceu-lhe uma boca banguela

E eu, menos a conhecera, mais a amara?

Sou cego de tanto vê-la, de tanto tê-la estrela

O que é uma coisa bela? [...] (Álbum: Estrangeiro. Polygram/PPD-1069, 1989)

Essa canção pode ser tomada como exemplar justo da multiplicidade de referências culturais diaspóricas, não pelo simples mencionar de nomes e símbolos, mas pela bricolagem do estranhamento ao que é familiar, como um eco do unheimlich de Sigmund Freud (1980).

3 O Lócus de Enunciação Diaspórico

Eu sou neguinha!

Caetano Veloso

É nesse ponto que me denuncio: uma vez integrado no processo de recepção-produção de pensamento acadêmico, é para mim uma preocupação central vislumbrar caminhos pelos quais a “lógica institucional” do conhecimento não me endureça para a ‘multiplicidade híbrida’ do que se pode chamar realidade. Desse modo, ver Caetano como artista-intelectual diaspórico é também prescrever uma postura para mim mesmo, e recomendar que tal postura possa ser assumida por quem se notabiliza a partir da academia. Assim como Caetano está fora e dentro, quero poder estar dentro e fora do circuito acadêmico. Ambas as atitudes são diaspóricas no sentido privilegiado aqui.

É pertinente lembrar que o fato de Caetano estar fora e dentro não implica apenas sua "migração" e participação nos debates que se realizam a partir da academia. Anoto que ele recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal da Bahia, em 1998. É um signo de distinção oferecido por uma instância de poder-saber. Assim, Caetano não é apenas convidado, mas é autorizado a falar também a partir da academia. Duas cogitações ao menos podem ser feitas a partir desse fato. Uma é a de que a academia, por meio de seus processos de distinção, quer convidar as figuras públicas de notáveis realizações culturais e científicas para dialogar e enriquecer as discussões e pesquisas intelectuais. A outra cogitação, dentro de uma suposição foucaulteana, é a tese de que uma instância controladora selecionadora, organizadora e redistribuidora da produção de discursos – a academia, uma universidade – busca cooptar os diaspóricos através de um certo número de procedimentos, como a concessão de títulos autorizadores (o de Doutor Honoris Causa é apenas um exemplo), numa tentativa de dominar a sua atuação aleatória (FOUCAULT, 1997, p. 9-10). Seja qual for a motivação (e as duas atuam simultaneamente), o resultado final é que todos parecem se beneficiar, pois o diálogo intelectual se torna mais plural e proveitoso.

Portanto, tentei, em um campo metafórico, colocar o diaspórico a serviço de uma descrição de Caetano Veloso no ambiente da Crítica Cultural. Talvez não passe de uma compulsão classificatória (ou uma síndrome tipológica), mas foi a solução que encontrei para meu próprio posicionamento diaspórico no sentido aqui ampliado (ou reduzido, dependendo do ângulo que se queira olhar), quando me debruço sobre objetos que me são de certo modo estranhos, assim como ainda o são para muitos estudantes-estudiosos das chamadas belas letras: a poética antropofágica da MPB caetaneana.

Evitei, é importante anotar, utilizar os termos “informal” ou “diletante” no lugar de “diaspórico”, mas talvez sejam esses, no final das contas, os sentidos da “prática teórica” (o paradoxo é pertinente aí) do Caetano diaspórico.

E uma pitada de manifesto: que haja cada vez mais diaspóricos no cenário intelectual, e que essa postura impregne ainda mais a academia, sem que isso signifique a irresponsabilidade das citações e a inconseqüência das articulações entre campos e conceitos, mas que traga novos ares e pluralidades novas para o ofício “erudito” possível e produtivo na contemporaneidade.

NOTAS

[1] Trabalho baseado na revisão de anotações e pesquisas realizadas no âmbito da disciplina “Estudos Culturais”, do Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da Universidade Federal da Bahia, sob a orientação da Profa. Dra. Eneida Leal Cunha, em 2002.

[2] Tal descrição sucinta do ‘diaspórico’ é fruto de um exercício feito a partir da leitura da dissertação de Marcos Cezar Botelho de Souza: Estratégias da poética pós-colonial: Derek Walcott por uma épica menor. Feira de Santana: Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da UEFS. 2002, p. 134-57.

[3] No original: “The diaspora experience as I intend it here is defined, not by essence or purity, but by the recognition of a necessary heterogeneity and diversity; by a conception of ‘identity’ which lives with and through, not by despite, difference; by hybridity. Diaspora identities are those which are constantly producing and reproducing themselves anew, through transformation and difference”.

[4] Tradução do autor: “Eu uso esse termo aqui metaforicamente, não literalmente” (HALL, 1994, p. 401).

[5] Em um mesmo largo campo semântico, poderia acrescentar outros termos que ecoam o diaspórico aqui ressignificado: pós-disciplinaridade, hibridismo, internacionalismo nacional, pós-modernidade, fragmentação, deslocamento e descentramento, margem, rasura produtiva, metamorfose, provisoriedade, historicidade sensual, abertura ao inusitado, não-ressentimento, ressignificação, perlaboração, estranhamento, ambigüidade, etc. Por uma questão de limites do presente trabalho, as fontes e conceituações singulares desses termos não serão tratadas, mas os autores listados nas referências bibliográficas acima são um bom espaço para o estudo desses conceitos, especialmente se acrescentamos François Lyotard, Gayatri Spivak, Frantz Fanon, Habermas, Eneida Leal Cunha, Raymond Williams, Edward Said, dentre outros.

Referências

BHABHA, Homi K. O Local da cultura. Trad. Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

BOTELHO, Marcos C. B. Estratégias da poética pós-colonial: Derek Walcott por uma épica menor. 2002. 179p. Dissertação – Mestrado em Literatura e Diversidade Cultural – Letras – UEFS. Feira de Santana, 2002.

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. Relógio D'água Editores, Lisboa, 1997.

FREUD, Sigmund. (1919) O Estranho. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas – (ESB V. XVII.). Rio de Janeiro: Imago, 1980.

HALL, Stuart. Cultural identity and diaspora. In: WILLIAMS, Patrick; CHRISMAN, Laura (Ed.; Intr.). Colonial Discourse and Post-Colonial Theory: a reader. New York: Columbia University Press, 1994. p. 392-403.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

HUYSSEN, Andreas. Memórias do modernismo. Belo Horizonte: Ed. da UFRJ, 1966.

JAMESON, Frederic. Sobre os “estudos de cultura”. In: Novos Estudos CEBRAP, n. 39, trad. John Manuel Monteiro e Otacílio Nunes. p. 11-48, julho, 1994.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Trad. Alex Martins. São Paulo: Editora Martin Claret, 2005.

SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2. edição. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

VELOSO, Caetano. Entrevista concedida a Bernardo Vorobow e Carlos Adriano. In: CULT – Revista brasileira de literatura. n. 49, agosto/2001.

VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das letras, 1977.

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