A democracia da estética pop

A DEMOCRACIA DA ESTÉTICA POP

Resenha publicada na Revista da ANPOLL/Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística. n. 17, jul./dez. 2004.

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CRUZ, Décio Torres. O pop: literatura, mídia e outras artes. Salvador: Editora Quarteto, 2003. 252 p.

https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/revista/article/view/606/617

Décio Cruz Revista da ANPOLL, n. 17

“O Papa é pop[1] assim como o é o mundo da globalização de marcas comerciais, de signos culturais e de mitos da TV, do cinema, da internet e da literatura. O pop, que se deu mormente nas artes plásticas, enfatiza os traços democratizadores de sua proposta estética e apresenta um impulso carnavalizante de toda linguagem, como proposto por Mikhail Bakhtin. Tendo se consolidado como fenômeno estético no que se pode chamar de “tradição da ruptura” das vanguardas da alta modernidade artística e nos movimentos de contra-cultura dos anos cinqüenta e sessenta, o pop sintetiza o ímpeto desauratizador e dessacralizador que marca em boa medida o cenário do século XX, mas que, ao invés de datado historicamente, tem ressonância como uma visão de mundo fortemente constitutiva da arte contemporânea.

É a partir de tais considerações que Décio Torres Cruz se propõe, em seu recém-lançado O pop: literatura, mídia e outras artes (Editora Quarteto, Salvador, 2003, 252 p.), a delinear o ambiente pop como também ajustado para se pensar a literatura apresentada em obras como PanAmérica, de José Agrippino de Paula, que é considerado o primeiro trabalho literário pop no Brasil; Sangue de coca-cola, de Roberto Drummond; Meu nome é Gal, de Rogério Menezes; Morangos mofados, de Caio Fernando Abreu; O beijo da mulher aranha, de Manuel Puig; e Três tristes tigres, de Guilhermo Cabrera Infante, dentre várias outras narrativas de autores brasileiros e estrangeiros a partir da década de sessenta.

De uma forma didática e academicamente arejada, O pop: literatura, mídia e outras artes vem para preencher uma lacuna no estudo do pop, uma vez que é sistematicamente analisado nas artes plásticas, mas raramente como narrativa literária. Segundo Décio Cruz, a primeira tentativa de delinear uma teoria sobre o discurso literário pop foi a obra Supercaos (Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1980), de Evelina Hoisel – que muito oportunamente escreve a apresentação de O pop... –, seguida do ensaio “O cão pop e a alegoria cobradora”, de Luiz Costa Lima. Mesmo com seu tom leve e didático, O pop... ainda pode ser considerado ‘destoante’ em sua linguagem em relação ao objeto que aborda. Isso porque o fenômeno pop propõe a quebra radical das fronteiras entre os gêneros e linguagens, num processo de iconoclastia contundente em sua representação desfigurante e desalienante dos signos de uma civilização cada vez mais urbana, tecnológica, industrial e cosmopolita, e cada vez menos regional e folclórica. É aí que também reside a distinção central entre o pop e o popular.

Considerando que o discurso pop pode ter como possíveis precursores Walt Whitman e Baudelaire, seguidos por vários nomes das vanguardas dadaísta, futurista, cubista e surrealista, bem como pelos poetas beatniks, Décio Cruz se alia a teóricos como Octavio Paz e François Lyotard para caracterizar tanto o modernismo quanto o pós-modernismo (fronteiras fluidas entre as quais o pop germina e contamina) como prolongamentos da atitude romântica, com naturais ajustes no século XX. Porém, diferentemente dos primeiros modernistas pós-românticos, o pop não propõe o niilismo e o pessimismo paralisantes, mas “o ‘jogo’ alegre, nietzschiano” (p. 58), nas palavras de Décio Cruz. Disso decorre que, em um ethos ateu e caótico, caracterizado pelo sentimento de nonsense, descentramento, orfandade e fragmentação, o pop funciona como desrecalque de vozes e posturas abafadas pelas ditaduras e guerras frias e quentes que dominaram os últimos cem anos, em um campo semântico que pode incluir, dentre muitos, termos como contra-cultura, desbunde, carnavalização, democratização estética, indústria cultural, kitsch e geração odara. Boa parte desses fenômenos, que cruzam o pop, foram vividos na experiência de Décio Cruz, que assume ser O pop... uma “tentativa de reunir os fragmentos esparsos e estilhaçados” de sua história pessoal, a qual se cruza e culmina com sua atuação como professor da Universidade Federal da Bahia e da Universidade Estadual da Bahia, tendo recentemente defendido seu título de Doutor em Literatura Comparada pela State University of New York em Buffalo, nos Estados Unidos.

Com suas quase trezentas referências bibliográficas, discográficas e filmográficas, O pop... está dividido em quatro capítulos centrais. O primeiro trata dos precursores do pop, da indústria cultural e da democratização das artes, num percurso que vai de Whitman ao Tropicalismo. O segundo capítulo aborda os contornos fluidos da linguagem do pop, com sua característica central de carnavalização, de insubordinação à gramática e de tensionamento entre sagrado e profano. O terceiro capítulo se refere à temática do pop, que gira em torno do caos e do lixo, da violência e da festa, do corpo e do erótico, do kitsch e do que é sobra e sucata da urbis industrial e midiática. O quarto capítulo – “A identidade mítica” – consolida a abordagem do discurso literário no ambiente do pop, numa tentativa de delinear o personagem-mito desse fenômeno.

O pop... termina com uma conclusão em forma interrogativa: “E daqui, para onde vamos?”. Mas algumas considerações finais aí apresentadas podem dizer muito do conteúdo dos capítulos anteriores, a saber: a literatura pop tem uma função social quando serve para denunciar a transformação do fator cultural em um instrumento de manipulação do homem moderno através da comunicação e da informação; a literatura pop desmascara, de modo ainda mais contundente do que nas artes plásticas, o jogo de poder mercadológico da indústria cultural; a literatura pop propõe a revisão da tradição sob a ótica da carnavalização das linguagens e a rasura das fronteiras hierarquizantes entre manifestações culturais; a literautra pop apropria-se da mitologia cristã e a dessacraliza em sua hibridação com os mitos urbanos.

Como energia geral dessa obra de Décio Torres pode-se apontar sua visão da permanência do “sonho pop” como democratização e dessacralização do estético e que “o fim da festa pop só será declarado quando a bomba realmente explodir” (p. 220).

[1] GESSINGER, Humberto. O papa é pop. In: O papa é pop, Engenheiros do Hawaii, 1990.

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