sacros e ou sacrílegos

Ilustrações e Capa

Wellington Mendes

Planejamento Gráfico

João Soares

Revisão

Rita Aragão Matos

Colaboração

Dilson Midlej

Andréa Toledo

Jamyson Goes

Edição do Autor

Salvador, 1999

(in)versos

Isaias Carvalho (1999)

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IV

Sacros e/ou Sacrílegos

Para uma Estética da Defecação

Fuligem Poética

Estes

Abaixo os cânones!

Elejo os cães e seus dejetos

o modelo do projeto moderno.

Abaixo os cânones!

Elejo o ânus e a merda

as formas belas maiores, as musas.

No horizonte,

o buraco negro da criação.

Religiões

Humana festa e totens aos sinais do mundo,

alegoria à diferença do não-nós,

promessa de força com impotência no fundo.

É fogo vão e, dos enganos, a fonte, a foz.

Alucinação tonta de que advimos

de instâncias superiores que criamos para nos inventar.

Incenso, sangue, danças, violência e tanto vinho,

ritos, gritos, símbolos para diminuir e dominar.

A fé é o feno atado a um palmo da boca do asno.

A certeza de satisfação no inalcançável mistério.

É a graça do itinerário inútil para um outro plano,

a farsa do inventário fútil das verdades universais,

a recompensa e o viver monótonos sempre pós-necrotério.

Ora, esqueçamos! Com ou sem crenças, não há paz.

Minha Religião

Na minha religião, eu sou um deus.

Na era de aquário, eu sou Hera, pelo trocadilho.

Os pecados são todos amigos meus,

mas não os cometo todos, para não perder o brilho.

Meus rituais são os possíveis:

graças aos hormônios, meus favoritos são os sexuais.

Sei que o fogo vital é perecível,

então incentivo, enquanto duro, os bacanais.

A salvação, na minha igreja,

pode ser a eutanásia mais tarde,

como pode ser, agora, uma cerveja.

Na minha fé, o homem é o centro

de um círculo sem margens

e oco por dentro.

Impasses I

Meus semelhantes na terra!

Enquanto não decidimos se Deus morto ou moribundo,

se nossa catarse ainda se dá pela guerra,

se a arte, de tão segmentada, foi ao fundo

do poço raso, ao menos ensaiemos o próximo passo.

Se é impossível domar o rebanho,

se as diferenças são do todo o laço,

ao menos tomemos o primeiro caminho

entreaberto à nossa frente.

Se morreram as musas, as lentes,

ao menos juntemos alguns trapos

e sigamos sem o quê em mente.

Se, por mais que se tente,

nos vemos cada vez mais fracos.

Impasses II

Há muito caiu a aura do mundo, dos santos,

da hora inspiradora, dos reis e da arte.

Já é desusado dizer, pois certo, em prantos:

não espere nada grande de minha parte!

O tema do presente tempo são todos os temas.

Ainda, tento tramar a obra,

trançar os plurais, os esquemas,

tornando-os unos como uma grande cobra.

Assim, sem tema e sem aura,

sigo o caminho do ser:

a linguagem que a tudo instaura,

as metáforas esquecidas em ermas ilhas,

os versos de se saber pouco e se esquecer.

Ao homem, as paisagens são sempre alheias.

Tesão

Meu sexo teso

(preso à mão,

minha ou não,

ou no dentro úmido de amantes)

é a tese

(improvável, se fora do tato,

do fato)

de que o falo fala

em outras línguas e bocas:

hay que endurecerse pero sin perder la ternura jamás.

Da mulher ou do mênstruo

Uma mulher, o que é?

A mulher não é.

Não é apenas um ser que apodrece uma vez por mês.

Certeza

Estou seguro sobre

a minha orientação sexual,

os meus ideais políticos,

os meus gostos musicais, literários, palatais,

os meus desgostos.

Até sobre a possibilidade de deus.

Não há dúvida:

sou explicitamente dúbio.

As Mulheres Que Amei

As mulheres que amei

me amaram mais do que eu a elas.

As mulheres que amei

Me esperaram sempre (como se a uma tragédia iminente) às janelas.

As mulheres que amei

Definharam lentamente.

As mulheres que amei

Foram todas invenções da minha mente.

Sombria Adjetivação (para ser lido em gotas)

Há 290 adjetivos com significados afins neste poema; na primeira parte, as iniciais das palavras formam 8 vocábulos necessários(?). (Esta pode ser considerada uma informação técnica irrelevante)

1 - Do homem e de sua sorte:

Escasso, raso, obsceno, sombrio.

Torso, áspero, nefasto, atro, tosco, obscuro.

Devasso, insólito, odioso, nocivo, ilícito, sibilino, indigno, obtuso.

Bestial, escatófilo, lânguido, zambro, execrando, biofóbico, ufanoso.

Aziago, nauseabundo, torvo, ilusório, chulo, reles, ímpio, satânico, torto, oco.

Lúgubre, umbroso, criminoso, infame, funesto, excrescente, repugnante.

Triste, recôndito, escuso, vazio, ascoso, sórdido.

Atroz, podre, obnóxio, cruel, arisco, louco, ignóbil, pífio, sujo, escuro.

2 - Da poesia:

Encurralada, desesperada, encruzilhada, indecisa. Agonizante?

3 - Observação:

Outros adjetivos quaisquer teriam bastado.

As palavras aqui foram anistiadas.

Libertas dos valores do autor. (?)

Ou seja, o impossível.

Ou não seja.

Seja o que for.

4 - Ainda do homem e de suas circunstâncias, dentre tantas outras particularidades menos elogiosas (complemento dispensável do poema Sombria Adjetivação, este também dispensável, como todo poema):

Tenebroso, desastroso, monstruoso, jactancioso,

turvo, torpe, torto, malsão,

penoso, perigoso, preso, pasmoso,

preto, pobre, espúrio, vão.

Vil, avaro, vulgar, terrível,

pervertido, adverso, vicioso, execrável,

venenoso, revolto, perverso, desprezível,

malévolo, repulsivo, aflitivo, reprovável.

Amargurado, falso, putrefato, escabroso,

degenerado, fraco, atrófico, caliginoso,

definhado, fatal, horrível, asqueroso,

amaldiçoado, falho, disfórico, pavoroso.

Descomunal, mórbido, imundo, mau,

manchado, murcho, maléfico, maníaco,

desumano, melado, mirrado, anormal,

misógino, merencório, ermo, desarmônico.

Agourento, zote, destroçado, doente,

feio, infeliz, mísero, decadente,

danoso, renhido, peçonhento, deficiente,

desolado, desditoso, fragoso, indolente.

Fanático, fétido, sôfrego, pávido,

tirânico, árido, apocalíptico, melancólico,

patético, pusilânime, pérfido, estúpido,

ridículo, anômalo, esdrúxulo, diabólico.

Estulto, esquisito, escarninho, estragado,

falido, furibundo, final, frustrado,

sacana, sanguinolento, sinistro, safado,

grosseiro, agreste, grave, desgraçado.

Iracundo, corrupto, rude, errado,

árduo, horrendo, ríspido, depravado,

torturante, cancerígeno, estranho, arruinado,

tolo, preconceituoso, deletério, quebrado.

Desairoso, vergonhoso, turbulento, transtornado,

tonto, terrificante, tenso, atormentado,

hediondo, desagradável, perdido, danado,

baixo, branco, abjeto, baldado.

Ilegal, imperfeito, infernal, infenso,

nojento, nefando, lancinante, pungente,

inhenho, medonho, leviano, azarento,

mesquinho, inidôneo, intrincado, ofuscante.

Misonéico, abominável, miserável, fútil,

Mefistofélico, misossófico, mefítico, fúnebre,

disforme, assustador, soturno, hostil,

inadequado, assombroso, maldizente, medíocre.

Taciturno, ressequido, preguiçoso, minguado,

parco, periclitante, pestilento, maldito,

demoníaco, pernicioso, confuso, mortificado,

misterioso, suspeito, desleal, aflito.

Letal, pedante, maligno, lastimoso,

molesto, patife, débil, encardido,

mortal, misoneísta, ruim, lutuoso,

infausto, imoral, ininteligível, carcomido.

Ladro, tedioso, incestuoso, estuporado,

estuprador, violento, pútrido, homicida,

incoerente, feroz, rabugento, malogrado,

maculado, canibal, covarde, suicida.

Crime e Castigo

(desomenagem a todos os opressores de povos do mundo)

Se me prendem, me calam, torcem meus braços;

se me esbofeteiam e me cospem;

se me fazem perguntas, cujas respostas já sabem;

se me eletrocutam no escroto;

se me estupram, me jogam no esgoto;

se me levam pro mato, me quebram os ossos;

se me mandam correr, atiram, eu caio - meu último ato;

se me lançam aos abutres...

O que querem que eu diga?

Que não fui à guerra para defendê-los?

Que não dou esmolas?

Que não canto o hino nacional nem o da bandeira?

Que não votei no presidente?

Que sonego impostos, pois impostos?

Que não ajudei uma velhinha a atravessar a rua?

Que olhei minha mãe nua pelo buraco da fechadura?

Que me masturbei na igreja?

Que não amei o próximo, mas a mim mesmo e só?

Que escrevi versos sujos e impertinentes?

Que morro feliz?

Estamos acordados:

vocês mortos, vivendo,

eu vivo, morrendo sempre com sua pólvora sem sentido.

Lenta Eutanásia

Como os maiores perecíveis - dicionários e dinossauros -

extingo-me com o dia. Com a noite.

Como os últimos trocadilhos do poeta cansado

- fértil, mas inútil diante da beleza última -

me preparo para a morte.

(Por que tem a fala tão fúnebre, o poeta?

Para conter o suicídio?)

Para conter o suicídio.

Anti-Réquiem

Um funeral sem glórias

para um cultivador de anti-heróis.

A morte a cada curva

da memória

curta.

Pó.

Só,

furta

da escória,

após a chuva,

o único triunfo por tantos sóis:

um funeral sem glórias.

Brasil Vermelho

O vermelho entrará no pano nacional.

O pau-brasil,

o sangue índio,

o sangue negro,

o sangue de todos os nãos.

O vermelho devolvido manchará o branco, o azul, o amarelo, o verde.

As entranhas estranguladas

de todos os nãos

serão o progresso e a ordem.

Farrapos Poéticos de um Fim de Tarde

A poesia, finalmente,

é uma prosa corrupta.

Apenas alguns pedaços da gente

e das coisas e suas idéias.

Consome algumas rimas fortuitas,

meios e meias epopéias.

Não demanda muito trabalho,

quando se tem nas veias

o dom de esculpir sobre atos falhos.

Abaixo a hipocrisia!

Essas rimazinhas e essas ideiazinhas

podem ser um poema, aí acima!

Bem podem ser uma porcaria.

Bem podem ser a maior obra do século que se inicia.

Ou a beleza mínima.

O poema, finalmente,

se quebrou.

(in)versos