reciclados

Ilustrações e Capa

Wellington Mendes

Planejamento Gráfico

João Soares

Revisão

Rita Aragão Matos

Colaboração

Dilson Midlej

Andréa Toledo

Jamyson Goes

Edição do Autor

Salvador, 1999

(in)versos

Isaias Carvalho (1999)

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II

Reciclados

Metaforização

(Argutas ambiguidades

descansam onde moram as metáforas.

Aguardam o cio dos poetas.)

O silêncio brisa em meu rosto

e diz que os louros não são meus.

A vitória em versos

é ver, na poeira, no vento,

os mortos átomos da paixão.

Teu corpo, meus sonhos.

Teu sorriso, mirra e incenso,

morte e ressurreição

da fênix-poesia

a cada tempo de não.

O silêncio chove em meu rosto.

Estes (1997)

Poema-corte

Como piadas,

versos vêm e me fazem rir.

Distraído, até esqueço que são lâminas afiadas.

Poema-fonte

a Joceval Santana

O poeta não é a sua poesia,

se, tal Narciso,

afoga-se nela.

Busquem a poesia.

Quanto ao poeta: esqueçam-no.

Deixem-no afundar...

em paz?

Poema-lucro

Por dias da poesia me olvidei

levado por vozes: “poemas são utopias”.

Mas é dessa quimérica menos-valia

que sugo o que sem

bem pouco faria.

Ora, bem-vinda, pródiga companhia!

TV

Algo sorri na sala

sempre,

e cala o homem,

seu ventre semi-

desejo estonteado,

seu quase ser

morrente.

Mais que o mundo, ali

sorriem objetos

manequins

para esse meio-homem,

e tão bem

que também ele

se pensa sorrindo.

Algo ri na sala.

Pois, Moderno

Luz que se a

paga a conta do milênio.

Cidadãos do mercado, nú

meros marcados para negó

cio sem gozo. Prontos e emba

lados esquerdo e direito de apenas con

sumo de tudo. Expostos diaria

mente parabólica no mar de in

formações eletrônicas. Estatis

titicas de ga

linhas de montagem. Ser pós-moder

no mundo-aldeia é is

só, em meu canto.

Se ainda canto.

Pr(oc)ess(o)a de Criação

Tempos outros, caro poeta!

Faço versos, quando os faço,

como almoço em fast food,

como o alvoroço do sexo jovem

ou a cópula dos coelhos,

como bombas que chovem em Kosovo

ou como Hollywood faz fotos.

Metamorfoseio marcas dos mestres mortos muito vivos de minha infância.

Remendo. Emendo brancos versos,

bravos bocejos da pujança dos símbolos.

Ruminação.

Livre-arbítrio

Quero fazê-lo. O farei.

Posso fazê-lo. O farei, se quiser.

Devo fazê-lo. O quero. Posso não fazê-lo, entretanto.

Sou livre.

Patavina!

Quero matar o rei. Posso? Devo?

Posso matar a mim mesmo. Quero? Devo?

Devo pagar os impostos, o dízimo. Quero? Posso?

Livre é a pedra

que o pariu!

Poema-inseto

Em meio a tanta quanta sujeira e pó,

pousa displicente

um poema saltitante.

Nenhum homem,

nem mesmo o mais sábio,

jamais o compreenderá.

Fuligem Poética

Phoné

Na língua flor do Lácio, língua é também músculo,

dorso, lâmina, ápice.

A transcrição do homem.

Músculo de prazer

e de não.

O músculo do nome.

Dos pulmões, em polvorosa,

o ar sonha ser energia sonora.

A senhora língua,

ora na boca (em samba), ora fora,

copula com os signos do mundo.

Meu Nome

I

saías. Hoje não sais mais. Os músculos não te respondem.

Nem as proteínas ou os sais.

I

saias não. Preciso da segunda. A terceira pessoa não me basta.

I

saias de renda, saias de ciganas e saias mais. Tantas saias.

Isaías? Não se sabe.

Caos

Versos são sementes

semeadas por dementes

nos áridos sulcos dos sertões dos outros.

Portanto:

adrede, atávicos vocábulos

me tomam em azáfama,

chilreando para este, o estro,

esfazendo a dor,

o esgar.

Sou o étimo do ego,

o nihil-obstat de minha obra:

eu mesmo.

Caoso-me:

causo o caos,

caotizando a causa.

Ressaca

Cedo, um sonho derrama-se manso

sobre as dores da rua.

Mas é tanta a dor que eis logo deserta de sonhos

mais uma manhã de sono abundante.

Não há de ser nada.

Dormirei:

é a que me proponho

por mais um instante.

Real

A realidade é um sonho que não deu certo.

Um sonho que se perdeu da nação onírica.

Do Autor

Ah! Meu caráter quase sem jaça

e sem graça também.

Não fossem meus parcos versos,

eu mesmo me diria:

- és ninguém!

A Língua Ur

A priori, já usei todo o meu latim

e sou a prosopopéia de uma língua encantada.

A flor do lácio murchou o cio, o sim,

sua proposta,

sua estrada.

Como o vagido natal

e a lata senhora fatal - comuns aos mortais,

mutatis mutandis , o verbo vive apenas quantum satis.

O Heterônimo Tropical

O que deixaste para eu dizer, Pessoa?

Simulo a tua resposta, uma vez que te podes metamorfosear em tantos:

“por que queres dizer,

caro poeta?

Silencia e ouve o sibilo das formas,

vê como o real te vê,

senão por rima, por prazer... senão por quê?”

És tu, Fernando,

ou este outro que usa a segunda pessoa

para ver como soa?

Este muito consciente para ficar louco

ou vice-versa.

(Este heterônimo tardio, abandonado e duvidoso)

Dele guardei este poema sem título e marcas profundas na minha alma, onde quer que ela more. Não lhe guardei o nome.

Mas como ele tinha em abundância o que um nome não revela! Se era de fato um poeta vivente ou apenas uma miragem minha, não sei. Era.

Anacrônico. Se não tinha cem anos, tinha mais. Não fosse a língua insuficiente para a descrição e não fossem as descrições tão incompletas, daria, porque o tenho em mim, um exato retrato do homem que conheci. Que nos bastem o seu nariz avantajado e já sem formas definidas – mero suporte para os óculos antigos -, seu corpo magro curvado em denúncia de uma grande estatura outrora, sua pele pálida – quase a ausência de cor -, suas roupas e seu chapéu pretos – já inerentes à sua figura fora de moda, fora de tudo.

Aos fatos, se os há. A partir do momento em que me descobri um não-estético (não sei ao certo o que isso significa, apenas o sinto, sinto muito), o que coincidiu com a perda do meu status de cidadão casado e de todo tributável, passei a frequentar um bar no alto de um dos muitos morros com vista para o mar. Em Salvador, na Bahia, certamente, mas o nome aqui é prescindível.

- O que são os nomes diante dos mistérios do mar? O meu, por exemplo, é menos que um nome.

Respondeu ele à minha curiosidade natural.

Notei que sempre sentava no mesmo canto, todos os dias. Todos os dias em que eu estava lá, lá estava ele, do meio da tarde ao meio da embriaguez e a da falsa escuridão metropolitana. Não me recordo de um “boa noite” ou de um “adeus”. Mas me lembro da primeira vez que o abordei, levado por um misto de impulso etílico e de comunhão circunstancial.

Se, para mim, a realidade circundante não interessava, para ele, nem parecia existir. Rabiscava em guardanapos, pedaços de papel e velhos jornais, enquanto se mantinha em contemplação evasiva do mar e do ar. A primeira impressão que tive foi a de que ele sempre estivera ali. Antes da existência do bar. Antes daquele primeiro de junho de 1988, dada a justeza do conjunto que ele formava com a mesa, a cadeira e o que o seu olhar divisava. Me aproximei:

- Com licença, não pude evitar...

Tentei esboçar uma abordagem formal, quando ele me interrompeu:

- Pode sentar, meu caro.

Obedeci, meio tonto, mas prevendo a importância do que se sucederia.

- Sem protocolos, camarada. Estamos aqui por motivos semelhantes.

Fiquei em silêncio. Tomei uma cadeira, sem lhe bloquear a visão do mar, que lhe enchia os olhos da mesma cor. Ele sabia, por razões além da minha consciência, que eu não precisava lhe fazer perguntas. Continuou:

- Eu me recusei a seguir a teoria do mestre Caeiro, mas caí na mesma armadilha que ele e todos os outros histerônimos: procurei ordenar o caos pela linguagem. Hoje, sou apenas um fragmento exilado e esquecido do caso pessoano.

Eu era todo silêncio. Entendi o que ele tentava me dizer, mas não pude dialogar. Não percebi a extensão do momento. Sua voz saía como se de um baú antigo. De dentro de mim. Eu o ouvia primeiro em mim para depois sentir a realização física dos sons. O que aquele senhor pensava estar fazendo ao se integrar tão bem ao mundo pessoano, que sempre me fascinara, mas parecia ser a última coisa de que eu precisava naquele momento da minha existência duvidosa?

Em um outro momento dos nossos poucos encontros, ele me disse:

- Nasci no mesmo dia e hora que Pessoa, de uma gestação múltipla e ubíqua. Mas naufraguei na grande barca da língua portuguesa. Desde sempre o mar me vomitou nesta nação-continente que, de Portugal, herdou a esperança do que nunca vem.

De biográfico, acrescentou ter ficado órfão, morrendo-lhe a mãe no parto, e ter sido adotado por todo o nonsense profetizado para o século XX. Para ganhar a vida, a qual me disse ter perdido profundamente, fez de tudo um pouco, menos o lícito.

O que dele mais me marcou, no entanto, foi o seu rancor para com o ortônimo, veladamente notado em seu poema:

- Se há alguém que tenha vivido plena e validamente, esse não fui eu. Uma palavra resume o meu fado: desilusão. Pessoa me fez acreditar que eu era outro. Nada me ilude hoje, nem o fato de eu ser o único genuinamente (mal) criado nos trópicos. Somos todos o mesmo na diferença. Foi mais uma sua brincadeira de ser Deus. Nunca o perdoei. E por isso abandonei a poesia, sem que ela me abandonasse, entretanto. Ela me foi uma maldição.

Diariamente, como um ritual, me sentei à sua mesa até o dia 13 daquele mesmo mês, daquele ano, a partir de quando nunca mais o vi. Não é pressa narrativa: é a insuficiência dos significantes para relatar a inconsistência dos fatos. Seu único poema talvez revele mais do que o meu vão relato.

Quando procurei o meu amigo esquizofrênico (ou seria histeroneurastênico?), no dia 14 daquele junho, encontrei apenas uma mesa vazia e o poema já aqui transcrito, rabiscado em um guardanapo surrado. Sem assinatura. Teria morrido de velhice? Suicídio? Atirara-se ao vasto mar? A Portugal, finalmente? De nada adiantou inquirir dos garçons, pois eles nunca o viram. Nunca enxergaram um velho mais velho que a velhice em uma de suas mesas.

Desolado, percebi um espelho naquele canto privilegiado do bar. Nunca o vira antes, mas me asseguraram que ele sempre estivera ali.